A nova pele de Caroline Farberger. A primeira CEO trans
A palavra trans é prenúncio de metamorfoses. Caroline
Farberger passou a viver na pele de uma mulher aos 50 anos. Até então sentia-se
fechada numa Caixa de Pandora, lá dentro encontrava-se Carl Farberger.
A Caixa de Pandora foi aberta há seis anos e provocou vários
furacões na sua vida e em redor. Mas, finalmente, vive em verdade. Tornou-se
ativista e embaixadora da Diversidade e da Liderança Inclusiva pelo Mundo.
Estamos frente a frente, via Zoom, cinco anos depois do
coming out de Caroline Farberger e temos o privilégio de conhecer uma mulher
trans feliz, desassombrada, que tomou uma decisão difícil, sem nunca perder a
bravura. É a primeira CEO, pelo menos da Europa, a assumir publicamente a
transição de género; ninguém o tinha feito antes a um nível executivo.
O seu storytelling está muito bem ensaiado, mas isso não lhe
tira genuinidade nem o alcance das suas mensagens. Tornar o mundo empresarial
mais inclusivo é a sua batalha inabalável, de quem se entrega tanto ao justo
como ao autêntico.
A sueca Caroline organizou tudo ao detalhe. O ano da sua
transição foi o mais difícil da sua vida, mas o grande dia chegou: a 13 de
setembro de 2018. De lá para cá, continua casada com a mesma mulher, tem três
filhos (os gémeos com 17 e o mais novo com 12) e mostra superação e
resiliência, capaz de mover montanhas e fazer chegar a sua história longe. Não
fosse esta uma das histórias mais transformadoras, verdadeiramente inspiradora
e reveladora da importância de se ser genuíno. Afinal, estamos apenas a falar
de coragem, empatia e amor, elementos basilares a uma boa liderança.
Há ainda uma esmagadora dificuldade em sermos nós
próprios no mundo empresarial. Como é que foi o seu último dia como homem?
Cheguei à conclusão, há seis anos, que era uma mulher na
minha identidade de género. Estive escondida grande parte da minha vida. Até
então vivia uma vida perfeitamente normativa como homem. E apercebi-me que
precisava de ser verdadeira comigo e viver a minha vida de forma autêntica. Foi
uma decisão muito difícil, porque podia correr grandes riscos. O que
aconteceria se fizesse a transição de homem para mulher? Seria excluída?
Perderia a minha família? Perderia a minha mulher? Perderia algumas relações de
amigos e familiares? O que aconteceria à minha posição na empresa? Perderia o
respeito na comunidade empresarial? Continuaria a ser respeitada como CEO? Não
tinha forma de o saber, porque ninguém tinha feito isto antes, pelo menos que
tivesse conhecimento. Não conheço um CEO que tenha feito o coming out como
trans. Decidi então que o ia fazer durante “a noite”. Entendi que precisaria
provavelmente de um ano de preparação para me apresentar ao mundo exterior.
Desenhei um plano anual: primeiro falar com o meu núcleo, amigos próximos,
familiares, e mantê-los confortáveis com a minha decisão. E ainda toda a
questão prática, desde um novo guarda-roupa, aspetos médicos e legais, e o
grande dia chegou: 13 de setembro de 2018, uma quinta-feira, saí do escritório
como Carl e regressei no dia a seguir como Caroline. Nesse dia também tive
a ajuda do Di Weekend, fui capa do suplemento de fim de semana do jornal de
negócios sueco, com um artigo muito completo de 10 páginas a educar a
comunidade empresarial sueca sobre o que significa ser uma pessoa trans e como
deve ser considerado parte do novo normal viver a vida de forma autêntica.
Fazer o coming out num jornal reconhecido ajudou-me a ganhar credibilidade.
(…).
Cresceu como Carl Farberger, fez um percurso de sucesso
na chamada bolha heteronormativa de homem, branco e heterossexual. Tornou-se
Consultor na McKinsey, casou com uma mulher, tem 3 filhos e continuou a avançar
na carreira, foi CEO da ICA Insurance até 2022 e hoje faz parte de vários
Conselhos de Administração. Para aqueles com percursos semelhantes, que
conselhos partilha?
Primeiro, não se sintam envergonhados ou culpados. Alguns de
nós são pessoas trans e isto é um facto, outros são homossexuais. Não há nada
de errado connosco, é perfeitamente normal. Usualmente, não há grande
conhecimento na comunidade, nem todos conhecem uma pessoa trans. Vão precisar
de tempo para os informar e explicar o que se passa e o que sentem sobre a
vossa identidade de género. E se tomarem a decisão de fazer a transição, que é
a palavra que usamos quando mudamos o nosso género social, ou seja, a forma
como nos vestimos, nos maquilhamos, como nos apresentamos, incluindo a mudança
de nome, neste caso devemos fazer uma boa preparação, informar todas as pessoas
antes de acontecer para não ser uma surpresa. Devemos educar a nossa
envolvência.
(…).
A identidade tem várias camadas. Qual é que foi o ponto
de viragem para o seu “renascimento”?
Sempre tive uma inclinação feminina escondida, tal e qual
como numa Caixa de Pandora. Mas comecei a abrir a caixa e a fazer coisas que me
faziam sentir melhor, como arranjar as sobrancelhas, fazer a depilação, reduzir
os meus traços masculinos, mas não percebia a necessidade que tinha de o fazer.
Curiosamente, foi a minha mulher que me encorajou a experimentar e no dia 6 de junho de 2017
decidi vestir-me como uma mulher. Fui a uma maquilhadora, comprei uma peruca e
apresentei-me da melhor forma que consegui, ajudada por profissionais. E andei
pelas ruas de Estocolmo pela primeira vez na minha vida vestida de mulher e foi
a melhor sensação que alguma vez senti. Finalmente senti-me eu, dentro e fora.
De repente, tudo ficou no lugar, tudo fez sentido. Foi um sentimento bastante
revolucionário e demorei um mês a processar e a tomar a decisão: sim, sou
trans!
(…).
O seu estilo de liderança mudou, como mulher? Ou as
prioridades modificaram-se?
Inicialmente, dizia que a minha liderança não tinha mudado,
era a mesma apenas noutro pacote. Mas enquanto homem via-me como um líder
experiente e achava que sabia tudo o que há para saber sobre Gestão. E se
me tivessem convidado há seis anos como Carl para falar sobre igualdade,
falaria com grande confiança. Mas levou-me apenas uns meses como mulher para
perceber o quão errada tinha estado e o pouco que sabia.
E continuava como CEO, as pessoas continuavam a
respeitar-me, mas agora enquanto mulher as outras mulheres confidenciavam-me
histórias que desconhecia. Como, por exemplo, aquelas piadas que contávamos não
tinham assim tanta graça, ou o quão duro pode ser o jargão, a dificuldade que é
sermos ouvidas numa reunião, o difícil que pode ser influenciar algumas
decisões em reuniões, ainda para mais se já foram todas tomadas por homens, e
ainda alguns testemunhos de assédio sexual conduzidos por homens, que nunca foram
reportados pela falta de confiança no sistema. E perguntei-lhes: porque não me
disseram nada disto antes? E diziam-me sempre que enquanto homem não perceberia
e que as veria como fracas ou simplesmente “queixinhas”.
Apercebi-me do quanto as mulheres precisam de tolerar para
simplesmente fazerem parte do jogo. Ao passo que os homens têm o privilégio de
poderem ser eles próprios. É um mundo de homens. Há tantas estruturas
construídas por homens e para homens, por isso se mantém tudo na mesma. Os
homens continuam a jogar em casa e as mulheres não. Por isso quem é que acha
que vai ganhar no final?
Fonte: Líder, 24 de outubro de 2023
Comentários
Enviar um comentário