A condenação de Cláudia Simões tem uma assinatura que não é só da juíza







The Irrational - Travina Springer, Paloma Nozicka

A juíza do Tribunal de Sintra que condenou Cláudia Simões está, através do seu lugar, a legitimar todo o ódio e toda a perseguição que os negros sofrem e a ser agente das campanhas cheganas

Dia 2 de agosto de 2020, o Chega organizou uma manifestação para dizer que não há racismo estrutural em Portugal, em resposta a todos os que se pronunciam sobre as evidências claras de que existe e é grave. Passados quatro anos não só o racismo estrutural continua a existir, como este partido tem sido o mais ativo contribuinte para a legitimação do discurso racista em Portugal, seguindo os passos dos seus parceiros de eleição na Europa e noutros países. Fazem-no sem subtilezas, em todos os seus discursos anti-imigração, na absoluta falta de empatia pelos estrangeiros, na retórica dos “nós” e dos “eles”. Recentemente, em entrevista ao Bernardo Ferrão, afirmei que a rede social X é, em grande medida, um dos principais veículos usados por membros do Chega para a disseminação de falsidades e discurso de ódio racista. Claro que se indignaram e espalharam mais umas quantas mentirolas (sobre mim, as mais suaves foram feitas com assinatura, as que configuram crime de injúria e difamação protegidas pelo anonimato cobarde típica destes neofascistas). Mas basta ver como, nos comentários às suas publicações, aceitam sem comentar, sem discutir ou questionar, todas as mensagens sobre “repatriamento”, sobre associação entre criminalidade e imigração já amplamente refutadas, sobre as paranoicas teorias da substituição. Legitimam, pelo silêncio, todas as alarvidades e declarações criminosas dos seus apoiantes.

Num estudo de 2023 sobre a linguagem das Fake News, os investigadores Jack Grieve e Helen Woodfield apresentam uma tipologia que cruza o eixo da honestidade com o da verdade. Há notícias que são falsas, porque têm factos errados, mas o autor não tinha intenção de mentir (acontece nalguma imprensa que, rapidamente, corrige e desmente). Há notícias que são falsas, não porque contenham factos falsos, mas porque são truncadas e descontextualizadas para veicular mensagens desonestas (como todas as publicações dos deputados do Chega sobre subsídios a imigrantes, que omitem o seu contributo líquido positivo para a Segurança Social) e há as que são falsas porque apresentam dados que não são verdadeiros com a intenção óbvia de enganar (de que são exemplo declarações de um deputado do Chega sobre haver mais suicídios do que mortes por cancro da mama ou diabetes em Portugal ou o vídeo publicado por outro em que, alegadamente, a polícia espanhola estava a fugir de imigrantes). Esta tipologia é interessante, porque nos permite perceber, no contexto da política nacional e estrangeira, onde se posicionam os políticos que mais promovem a informação falsa associada a desonestidade: na extrema-direita.

A condenação de Cláudia Simões é um motivo de vergonha para todos nós e um sinal de todos os erros do Chega: a prova de que há racismo estrutural, a evidência da desigualdade de tratamento em função da cor da pele. Eu não tenho qualquer dúvida, mesmo nenhuma, porque já aconteceu, que, se me esquecer do passe no autocarro, tenho compreensão, não é chamada a polícia e que, se for chamada, não acabo o dia com a cara esmurrada. Como sei que os meus filhos, no caminho para a escola, nunca foram parados para serem revistados, ao contrário do que aconteceu várias vezes ao filho de uns amigos negros, jovem impecável que apenas era parado por ser negro. Como sei que que, a mim, se me exaltar seja por que motivo for, ninguém me manda para a minha terra, ainda que essa terra seja a mesma onde nasceu o meu amigo negro que é sempre mandado para lá. A juíza do Tribunal de Sintra que condenou Cláudia Simões, de acordo com os relatos disponíveis sobre a forma como a tratou durante as audiências, está, através do seu lugar, a legitimar todo o ódio e toda a perseguição que os negros sofrem e a ser agente das campanhas cheganas. Vimos o vídeo das agressões, vimos as fotos do rosto espezinhado. E vimos como André Ventura se entusiasma na defesa de tudo isto, ainda que de forma indireta, com os seus gestos de legitimação do lugar onde o racismo cresce nas forças de segurança. Esta juíza está a normalizar tudo isto, a prestar um péssimo serviço à justiça, porque transforma a vítima em culpada, emparelhando com os seus colegas magistrados que já fizeram o mesmo a vítimas de violência doméstica ou de violação, mitigando a culpa dos agressores ou sugerindo que a vítima “se pôs a jeito”. Esquece-se que a sua função é também pedagógica ou apenas se lembra disso para fazer a pedagogia que lhe interessa.

De post em post nas redes sociais, de sentença em sentença, de comentário em comentário, assistimos à perigosa normalização de tudo isto. À confusão deliberada entre ódio e liberdade de expressão, à redução de todas as formas de segregação e discriminação ao estatuto de opinião. Esta semana, Rishi Sunak partilhou um vídeo indigno sobre a abordagem do Labour à imigração, com a mais manifesta falta de empatia por todos os que vivem o horror da fuga dos seus países. Que isto parta de um partido conservador e não da extrema-direita é assustador, porque mostra a subtileza da apropriação do discurso racista por quem tradicionalmente não o era (ou não o assumia).

Quantos negros há, em Portugal, nos lugares de topo das empresas? Qual é a percentagem de médicos, professores universitários ou advogados? O racismo estrutural não se afere pela legislação, mas sim pelo atraso que ainda temos e que carece de discriminação positiva. E essa afirmação positiva deve, também, passar pela justiça, sobretudo quando as lutas são desiguais, quando uma juíza devia medir proporcionalidade na aplicação de penas, quando não podia ignorar que um crime pontual não é isento de um contexto maior.

Se a manifestação de 2 de agosto de 2020 já não fazia qualquer sentido, 4 anos depois ainda menos faz, porque o Chega tem permitido que haja cada vez mais Cláudias Simões em Portugal. Porque aqueles hematomas têm autores morais.

Fonte: Expresso, 2 de julho de 2024

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