Na wishlist de Putin
Alfred
Hitchcock Presents / Self Defense - Selmer Jackson
Enquanto
a guerra na Ucrânia nos ocupa
estratégica e intelectualmente no Ocidente, a lista de desejos do
Presidente russo não para de se estender para lá das fronteiras do Donbass.
Porventura será mesmo a resistência ucraniana à invasão de 2022 o que motiva a
Rússia a procurar suceder sobre e noutros alvos do globo. Eis alguns deles
É quase involuntária a tendência que coloca a guerra
russo-ucraniana no epicentro do debate acerca da ameaça russa à ordem mundial liberal. Essa
tendência não é falaciosa, tão pouco está em desconformidade com a realidade,
quer temporal, quer geograficamente falando. De facto, é esta guerra o expoente
máximo de uma demonstração real e palpável das intenções expansionistas e revisionistas de Vladimir Putin. O que essa
tendência pode provocar, porém, é um desfoque perigoso relativamente a outros
dos alvos do líder russo, nos quais, é preciso dizer, ele tem vindo a investir
mais ou menos silenciosamente. Em apenas alguns segundos, um simples exercício
de “zoom out” no mapa da Europa permite elencar vários
destes alvos. Mas, importa também salientar, a wishlist de Putin não se cinge a
este mapa, conforme veremos abaixo.
1.
Se começarmos pela História, nem sequer precisamos de nos
afastar muito da Ucrânia para constatar que existe uma tentativa clara de
recuperação de influência da nova Rússia sobre territórios da antiga União
Soviética. As ex-repúblicas do Azerbaijão, Moldávia e Geórgia são os casos mais flagrantes, onde
os denominados “conflitos congelados” têm vindo a conferir ao Kremlin uma
justificação “plausível” para o não corte do cordão umbilical com estes países.
Dizemos que estes conflitos estão congelados, porque, desde 1991, eles esperam
por uma solução para o vazio deixado pelo colapso da União Soviética, em
nacionalismo transformado. A existência de minorias (muitas delas russas) com
reivindicações separatistas nestes países oferece à Rússia a razão perfeita
para patrocinar a rebelião, grupos e milícias desordeiros, responsáveis por
grandes focos de instabilidade política e social às portas da NATO.
2.
No Mar Báltico, onde o apetite geopolítico russo dispensa explicações, o
Kremlin apostou recentemente numa estratégica provocadora, até hoje por
clarificar com exatidão, de “revisão fronteiriça”. Por razões geográficas,
naturalmente, a Suécia e os três Bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia) são os
mais preocupados com esta ideia mirabolante, que pode mesmo não passar de um
teste aos níveis de ansiedade da Aliança Atlântica. Mesmo que assim seja – até
porque, oficialmente, o Kremlin negou a intenção de ampliar a sua fronteira
nestas águas – o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas da Suécia, Micael
Bydén, deixou um alerta importante sobre o perigoso desejo russo de chegar à
ilha sueca de Gotland. Pode dizer-se que esta ilha está para o Báltico como os Açores estão para o
Atlântico. Isto significa que, desde março de 2024, quando a Suécia
se tornou um membro da NATO, a Aliança materializou uma importante aproximação
a um conjunto de países-chave, pela Rússia considerados como “estrangeiro
próximo” – uma designação que pressupõe que a Rússia deve ter uma relação
especial, mais estreita, com países outrora pertencentes ao espaço soviético.
Numa espécie de luta de galos, o Báltico inspira preocupação devido a este seu
estatuto nevrálgico que junta simultaneamente potencial geoestratégico e
sensibilidade histórica.
3.
Fora da Europa, um dos grandes objetivos da Rússia de Putin
é, em rigor, uma herança da
velha propaganda ideológica soviética: África. A influência e
patrocínio soviéticos em países africanos e latino-americanos é, aliás, um
pilar paradigmático da Guerra Fria. Nada de novo, portanto. Putin está, hoje, a
tentar recuperar esse pilar, aprofundando e sedimentando cada vez mais a pegada
russa no mundo africano, onde boa parte dos regimes políticos precisam do apoio
de ator externo de peso. Ocupar o lugar desse ator de peso para alguns regimes
em África serve os interesses da Rússia de duas formas em simultâneo: primeiro,
ajudando a expandir o seu mercado comercial, a sua presença militar e o seu
apoio diplomático além-fronteiras; segundo, ajudando a combater o mercado
comercial, a presença militar e o apoio diplomático do Ocidente
além-fronteiras.
4.
A ciberguerra não ocupa propriamente um lugar palpável no
planisfério, querendo isto dizer que o seu potencial enquanto ameaça é ainda
mais abrangente do que o das ameaças supramencionadas. A capacidade russa de destabilizar
remotamente o Ocidente ficou especialmente famosa nas eleições norte-americanas
de 2016, quando Donald Trump foi eleito Presidente dos Estados
Unidos. Mas a ameaça cibernética russa é, na realidade, muito anterior a essa
data, embora esteja a aprimorar-se cada vez mais: Estónia, 2007; Geórgia 2008;
Ucrânia 2014; Alemanha 2015; Reino Unido e Estados Unidos 2016; França 2017;
Coreia do Sul 2018; Polónia 2019; Roménia 2022. O leque de experiências é vasto
para provar que a ciber-arma também é uma arma e, sobretudo, para demonstrar
que a Rússia a usa, podemos dizer, com alguma frequência. Não existe, porém,
tão vasta experiência no que concerne ao nosso conhecimento acerca do
funcionamento doo “ciber-departamento” russo. Porquê? Porque a Rússia trabalha
simultaneamente com grupos e especialistas oficiais e não oficiais, alguns
deles mesmo ilegais (hackers), dificultando especialmente a tarefa preventiva
do Ocidente, tanto para evitar os ataques, como para compreender e dominar as
estratégicas dos seus autores.
5.
Provavelmente, a única ainda mais abrangente do que a
anterior é a ameaça nuclear
russa. Esta última, sem exceção, coloca em causa todas as coisas
conforme as conhecemos, incluindo a vida humana. Nos últimos tempos, a Rússia
tem sido particularmente insistente em matéria de chantagem nuclear cada vez
que os planos não correm como previsto. Um dos exemplos mais recentes desse
comportamento é a ideia de enviar tropas NATO para a Ucrânia, o que,
evidentemente, assusta a liderança russa, conduzindo-a à necessidade de invocar
o trunfo nuclear. A mesma liderança já confirmou ter tomado todas as decisões
necessárias ao uso de armamento nuclear, caso a Aliança Atlântica envie
recursos humanos para solo ucraniano. E, embora a Ucrânia tenda a considerar
esta como uma estratégia de bluff do Kremlin, a verdade é que a Rússia é, em
primeiro lugar, uma potência nuclear e, em segundo, é liderada por um homem que
está disponível para iniciar um conflito desse cariz.
Todas estas ameaças dizem respeito a pessoas, países e
regiões fora da Ucrânia. É, por isso, erróneo alimentar a retórica que ignora a
vastidão do projeto revisionista russo, assim como os seus objetivos não
estritamente relacionados com a Ucrânia. Nesta fase do tempo e do espaço, os
interesses ucranianos são também os interesses de todos os europeus e, em
última instância, os interesses de todos os amantes do mundo livre. Estes
homens, estas mulheres e estas crianças – o povo ucraniano – não são a última linha
deste mundo livre. Antes, são a sua linha da frente.
Fonte: Expresso, 1 de julho de 2024
De tão pop ficou Putin, que o próximo passo da indústria comentarista serão os “deep inside”, rebuscando curvas e retortas psicológicas profundas.
Deep Inside Felecia (1996)
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