João Gabriel Ribeiro - O vício coletivo que deixou o mundo nas mãos de Musk
Eliminators (2016) - Scott Adkins
A
história do Twitter, agora X, e da dificuldade em abandonarmos coletivamente a
plataforma é mais do que uma história sobre tecnologia, é uma história sobre
capitalismo, os limites da democracia e os trunfos do populismo
Uma visita ao meu perfil no X mostra que me registei em
2009. Na altura chamávamos-lhe Twitter, e não era sequer considerada uma rede
social. Havia um limite imposto nos 140 caracteres e era possível tweetar por
SMS. Eram outros tempos em que o Twitter era descrito como uma plataforma de
microblogging, e a sua utilidade causava desconfiança. Ainda assim, em
simultâneo ao crescimento do Facebook, o Twitter foi ganhando a sua audiência e
foi conquistando o seu espaço, embora junto de um número muito mais reduzido de
utilizadores ativos.
O limite de caracteres era um desafio, mas era complementado
pelo hábito da partilha de links, e a simplicidade da plataforma tornava-a
extraordinariamente horizontal. No Twitter, o feed mostrava única e
exclusivamente os tweets daqueles que seguíamos ordenados cronologicamente. E
estas particularidades iam permitindo à rede estabelecer-se como uma espécie de
espaço anti-Facebook, que desde sempre teve no feed automatizado a sua
imagem de marca. Com esta fama, o Twitter, que nunca se massificou como o seu grande
rival, conquistou uma audiência fiel. A horizontalidade e a menor popularidade permitiam
o contacto mais facilitado com celebridades, e a rapidez com que tudo era
comentado na rede tornava-a numa fonte preferencial para jornalistas ou para
quem quisesse acompanhar ao minuto o que se passava no mundo.
Ser uma rede social de nicho era, por um lado, uma das
grandes forças do Twitter. Mas também foi desde sempre uma das suas fraquezas. Os números abaixo da
concorrência tornavam mais difícil o financiamento e a monetização, e
obrigavam a reinventar-se para se ir tornando mais atrativa – copiando algumas
funções e o aspeto do Facebook, que, entretanto, se tornara familiar de tantos
internautas. A primeira
grande mudança deu-se logo em 2010, quando o Twitter assumiu o logo do pássaro azul
na sua versão mais minimalista, os tweets passaram a mostrar imagem e vídeo sem
ter de se sair da plataforma, e o site ganhou um aspeto mais moderno. E a segunda em 2014, quando o
feed passou a incluir tweets de contas que não seguíamos. A mudança pode
parecer muito distante, em retrospetiva, e marcou o princípio da escalada de importância do
algoritmo na experiência de utilização do Twitter.
Apesar da fama, as principais métricas da plataforma, como o
tempo passado por lá ou os utilizadores mensalmente ativos, permaneceram aquém.
Bem como os objetivos financeiros. O algoritmo que veio, claro, à boleia da
promessa de personalização, como em todas as outras redes sociais, tinha como
um dos principais objetivos tornar mais fácil a experiência inicial da
plataforma, mas não surgiu sem a resistência dos utilizadores mais antigos que
viam na ausência de automatização uma grande vantagem. Era como se o Twitter
fosse a última rede social onde era possível ter uma experiência pré-algoritmo.
Ainda assim, não tardou até que em 2016 o algoritmo ganhasse um papel ainda mais central no Twitter,
com o lançamento de um feed com essa base – uma mudança estrutural na
plataforma na tentativa de salvar o negócio.
O impacto desta mudança não foi fácil de verificar, porque a
maioria dos dados que orientam e avaliam estas decisões não são públicos, mas
numa reportagem da Slate o Gestor de Produto garantia que cada mudança
era testada e medida, antes de ser implementada. E sustentava que, do ponto de
vista do negócio, a introdução do algoritmo abria novas possibilidades. Agora
podiam compensar a sua pouca capacidade de gerar receitas com a promessa do
potencial do algoritmo nos discursos para os stakeholders. Do ponto de vista social, desde
cedo surgiram alertas sobre a crescente influência dos algoritmos na moderação
do discurso público e sobre os possíveis efeitos do formato na saúde mental dos
utilizadores, mas a utilização da plataforma acabou por se normalizar,
como em todas as grandes redes sociais.
As comunidades e dinâmicas iniciais, nomeadamente a presença
institucional e a forte presença de jornalistas e de outros gatekeepers,
já tinham criado raízes na plataforma e apesar da relação ser tornar cada vez
mais ambivalente com a perda das características fundacionais. Mas a
normalização do Twitter já era posta em causa por diversas vezes ainda antes da
chegada de Musk, geralmente quando as circunstâncias tornavam a influência
inegável ou a experiência insuportável. A fama da rede social como uma poderosa ferramenta de influência
política solidificou-se com a eleição de Trump. Brad Parscale,
responsável de campanha, chegou a dizer que “o Facebook e o Twitter foram o motivo pelo qual ganhámos
isto. O Twitter para o Sr. Trump. E o Facebook para angariação de fundos.”
E a predominância do discurso tóxico já em 2017 fazia com que se promovesse o
Mastodon como um Twitter sem nazis.
Durante algum tempo, e especialmente próximo de eleições, os
problemas do Twitter voltavam para cima da mesa, e a identificação como
anti-Facebook continuava dominante. Por exemplo, em 2019 Jack Dorsey anunciava que o Twitter proibiria
todos os anúncios de cariz político, numa reação à crescente
preocupação pública sobre a circulação de desinformação online nas redes
sociais, e num claro distanciamento do posicionamento de Zuckerberg que dizia
que não cabia à plataforma limitar o discurso político. Com o tempo, ambas as
posições revelaram a sua limitação no combate ao fenómeno da desinformação, no
entanto, serviram para desviar as atenções da natureza estrutural do problema.
Como um penso rápido numa fratura exposta.
Sem surpresa, foi durante a pandemia de Covid-19, que o Twitter teve o maior
crescimento nas métricas de utilização. A ânsia por acompanhar o
desenrolar epidémico em tempo real e com a necessidade de entreter os dias
fechados em casa era real e a utilização diária subiu 23%. Mas a quebra na
economia fez com que se acentuassem os problemas financeiros da plataforma,
numa altura em que a promessa do algoritmo não só se esgotava como se tornava
perversa. A quebra de receitas publicitárias descia, e a proliferação de
desinformação aumentava. Já
em 2018, um estudo do MIT tinha revelado que a plataforma favorecia a
disseminação mais rápida de notícias falsas do que das verdadeiras,
e com acontecimentos de enorme magnitude em debate as implicações do desenho da
plataforma alastraram-se a todos os campos do discurso público. Com a pandemia,
a desinformação infetava o campo da saúde pública, mas com a sucessão de
eventos o vírus alastrava-se por diversas dimensões.
As notícias falsas foram sucessivamente identificadas, e
desmentidas em órgãos de fact-checking, mas o problema principal da
plataforma neste domínio estava longe de ser abordado. A rede foi completamente inundada por aquilo que se pode
chamar de ‘poluição informativa’. Meias verdades, imagens e vídeos
manipulados ou descontextualizados, lógicas truncadas para favorecer
determinadas narrativas, discurso intencionalmente ofensivo ou tóxico,
tornaram-se mais do que uma simples exceção na plataforma. A única forma de
manter viva uma rede social que demanda por novo conteúdo a todo o
instante. Em 2021, Ada Colau, presidente da Câmara de Barcelona, na
sua mensagem de despedida do Twitter falava sobre os sintomas desta doença. Na
mensagem dizia que se tinha juntado pela discussão política e o diálogo aberto,
mas que ao longo do tempo isso se tinha perdido. Na mensagem não só criticava
essa tendência para a extrema-direitização do discurso dominante na rede como
apontava para o outro lado da questão, já aflorado. A ‘ditadura da presença permanente’,
que descrevia como uma obrigação induzida pela plataforma para estarmos
presentes em todos os debates a toda a hora.
Curiosamente (ou não), apesar das críticas mais incisivas
sobre o Twitter e as redes sociais mainstream surgirem sobretudo pela falta de
moderação dos conteúdos, a grande mudança que se seguira não foi motivada pelo
racional de apelo à moderação da rede. Mas pela reação à proliferação desse
discurso que fazia com que as redes sociais agissem com mais assertividade – momento que teve o seu apogeu na
suspensão da conta de Trump em janeiro de 2021. E dá-se assim a entrada em cena de Elon Musk,
que há muito se apresentava como um dos nomes mais sonantes da atualidade. O
seu interesse pelo Twitter surge motivado por uma visão absolutista da
liberdade de expressão – assim anunciada – online. Numa carta enviada ao
conselho de administração da empresa durante o processo de aquisição, Musk
defendia o Twitter como uma plataforma “para o discurso livre em todo o mundo”,
mas dizia que a empresa nunca atingiria esse desígnio enquanto não fosse uma
empresa privada (isto é, fora da bolsa, sem depender de investidores, shareholders).
Twitter agora é X
“A
razão pela qual adquiri o Twitter é porque é importante para o futuro da
civilização ter uma praça digital comum, onde uma vasta gama de crenças possa
ser debatida de forma saudável, sem recorrer à violência” — lê-se no
anúncio que Musk publicou quando se concluiu o conturbado processo de
aquisição.
Depois de vários anos de uma constante tentativa de
moderação da plataforma, evitando os efeitos secundários da centralização da
comunicação (como a facilidade de propagar falsidades) e procurando manter os
anunciantes que permitissem sustento financeiro, Musk comprou o Twitter para
inverter esta tendência. Ou melhor, quebrar esta dependência. Se esperar que os anunciantes
fossem a salvaguarda da decência da plataforma já era um hábito questionável,
mas pelo menos algo descentralizado, a partir da compra Musk chamou a si esta
responsabilidade.
Na mesma nota, Musk dizia que não
tinha comprado a rede social para fazer mais dinheiro, mas para ajudar a
humanidade que fora traída pelos média mainstream que, na busca por cliques, fizeram as visões
extremistas triunfar [sic] e destruíram a possibilidade de diálogo. Mais à
frente, diz que a publicidade podia ser positiva se tivesse relevância para os
utilizadores e não fosse só spam. Duas afirmações curiosas para rever, passados
dois anos da sua liderança. Dois
anos em que o diálogo se tornou mais difícil e a publicidade irrelevante
absolutamente insuportável.
Elon Musk alterou o Twitter como nenhum outro o havia feito.
Tornou-o seu. Mudou o nome para X, numa referência ao nome original do Paypal, empresa onde
começou a sua jornada de herói. Desmantelou o sistema de verificação de contas
e implementou uma espécie de pay-to-win (expressão que se usa para
caracterizar os sistemas de jogo em que é possível comprar habilidades, armas
ou outras vantagens). Com a nova liderança passou a ser possível comprar o até
então restrito visto azul, a possibilidade de fazer tweets de muito maior
extensão, e até alcance na plataforma.
As mudanças repentinas e a liderança de um homem só fizeram muitos dos grandes
anunciantes abandonar a plataforma, com receio de ficar demasiado
associados às posições de Musk. E a sua resposta a esse problema foi uma das
mais reveladoras sobre a sua verdadeira visão: “O que eu diria aos anunciantes e às marcas é o seguinte:
Utilizem o Twitter para vocês próprios e acreditem no que veem no Twitter, não
no que leem nos jornais”. “Porque o que veem no Twitter é a
realidade, e o que leem nos jornais não é” – acrescentou. Se Musk comprou o
Twitter sob a promessa de o tornar numa praça pública digital, e para livrar a
plataforma da influência do modelo de negócio da publicidade (a tal obsessão
dos média por cliques de que falava na sua mensagem original), acabou por
condenar a plataforma à sua própria influência, como mostra o seu ataque aos
intermediários.
Musk
convenceu-se de que o Twitter é a melhor forma de saber o que se passa no mundo,
e a verdade é que se essa promessa, quando pensamos no que o Twitter é hoje,
parece claramente exagerada. E até à data, salvo em circunstâncias excecionalmente
mediáticas, como a discussão da suspensão do Twitter no Brasil ou a acesa
corrida eleitoral norte-americana, a influência de Musk no que vemos do que se
passa, apesar de ter sido alvo de críticas, não foi propriamente suficiente
para abanar a centralidade da plataforma na teia com que se constrói o espaço
público. Continua a ser o
espaço onde os jornalistas sentem que têm de estar, onde vão buscar muita
informação – e
muita desinformação –, onde políticos reagem em primeira ao que se passa no
mundo, onde se decide qual a polémica do dia e quem é o alvo da semana.
Mesmo que em termos quantitativos esteja muito aquém das
suas concorrentes – estima-se que seja “apenas” a 9.ª plataforma
social com mais utilizadores – a reputação construída ao longo dos anos e as funcionalidades
que a ajudaram a construir mantiveram-se. Ainda que tudo à volta tenha mudado.
Se há alterações mais visíveis, no interface da plataforma ou sistema de
verificação, há outras que não são tão mediáticas, mas que no longo prazo
acabam por revelar as suas consequências. Uma das primeiras decisões de Musk ao
assumir o controlo do Twitter foi desmantelar o Trust and Safety Council, uma divisão com mais
de 100 representantes da sociedade civil que havia sido criado em 2016 para
aconselhar as decisões em matérias sensíveis. Outra, na tentativa, por fazer
dinheiro de todas as formas que não dependessem de anunciantes, foi fechar o acesso à API que permitia a terceiros a
recolha de dados.
Estas duas alterações combinadas demonstram como por um lado
tornou as decisões sobre a governança da plataforma menos democráticas –
minimizando a representação da sociedade civil – e, por outro, tornou mais
difícil perceber o que realmente se passa na plataforma, limitando o acesso à
informação. Os poucos estudos
e análises de
conteúdo que foram feitos desde a chegada de Musk dão conta de uma subida do número de tweets antissemitas e do crescimento exponencial
dos tweets ofensivos para a
comunidade LGBTQI+. Curiosamente, ou não, traços que
encontramos facilmente no seu discurso.
Se o Twitter, para crescer, no passado utilizou as
estratégias do Facebook, hoje em dia parece usar as estratégias do TikTok para
manter os utilizadores na plataforma e convidar à criação de conteúdo. A
proliferação de vídeos curtos, combinada com a tendência para o viral, fazem da
experiência cada vez mais viciante e tornam o discurso da plataforma cada vez
mais, aparentemente, fora de qualquer controlo e cada vez mais autorreferencial.
Não só os vídeos são mais difíceis de moderar
automaticamente, pelo que são um veículo ótimo para notícias falsas,
enquadramentos enganadores e todo o tipo de toxicidade online, como são o
conteúdo ideal para o binge. Com a nova estratégia, Musk quer fazer do X
o média dos médias. Exemplo flagrante disso foi a alteração do layout das
notícias na plataforma, com os títulos das notícias reduzidos a uma pequena
legenda praticamente invisível num scroll rápido. Mais uma vez, esta mudança
foi alvo de críticas e gerou bastante controvérsia, mas nada que pusesse em
causa a importância que se dá à rede. Nem mesmo por parte dos média, um dos
alvos preferenciais de Musk. Houve quem decidisse abandonar o X, mas a grande
maioria permaneceu.
É certo que o X não é a única plataforma tóxica na internet, o que não falta
são concorrentes neste campeonato. Mas o X tem uma presença de pessoas interessantes,
com cargos institucionais, e um ascendente sobre o discurso público que nenhuma
outra rede tem atualmente. Musk dizia
que queria criar um espaço público, mas, na verdade, vai revelando que o que
queria criar era uma plataforma onde pudesse amplificar as suas mensagens, uma
espécie de megafone público. Os reguladores, como Thierry Bretton em representação da União Europeia, ameaçam com
medidas drásticas (tal como aconteceu no Brasil) o que, de certa forma, ainda
serve para acicatar mais os ânimos e alimentar uma certa luta cultural que Musk
parece desejar. No meio dessa clivagem, as posições de parte a parte são
caricaturadas, e perde-se qualquer clareza no horizonte, quer do poder de Musk,
quer do que pode ou poderia ter sido feito para que não chegássemos a este
ponto.
Musk é mais do que o dono do
Twitter
Para considerar o poder de Musk e perceber o que o X lhe
permite, é preciso começar por recordar que Musk não é só dono do X, e que as
suas outras empresas (Tesla, SpaceX e Starlink) se desdobram numa série de tentáculos que atualmente
chegam às mais altas instâncias de poder nos Estados Unidos da América,
mas também até ao outro lado do mundo. Enquanto usa a sua própria conta de X
para espalhar as suas conspirações preferidas e todo o tipo de especulação
sobre o partido democrata e a legacy media que acusa de manipular
emoções, Musk usa a plataforma para alavancar o seu poder global, abrir portas
à expansão das suas empresas (e coletar dados para treinar o seu modelo de IA).
E usa a teia de dependências criada em volta de todo o seu império para manter
todo este poder incólume.
Se num olhar de relance o poder de Musk se limita aos
milhões que o seguem acriticamente, os fios que compõem esta teia são bem mais complexos.
Basta pensarmos que Musk pode estar prestes a tornar-se no primeiro trilionário
[em numeração americana, bilionário em Portugal] da história da humanidade; a
SpaceX é uma das principais fornecedoras da NASA e do Pentágono no que toca a
lançamentos espaciais; que a Starlink é uma das provedoras de internet por
satélite com maior abrangência, servindo em contextos extremos, como para o
funcionamento do equipamento militar da Ucrânia; e que a Tesla é uma das marcas
mais populares de carros elétricos, sendo atualmente a maior fabricante de
automóveis em termos de valorização de mercado – o que lhe confere capacidade
de investimento e expansão. É na intersecção de todos estes factos – e ainda
mais – que reside o verdadeiro poder de Musk, e analisar qualquer uma das suas ações
ou reações implica enquadrá-las neste esquema.
Um dos casos mais recentes e paradigmáticos da vontade de
Musk de se imiscuir em diretamente no debate político, sem qualquer reserva,
deu-se recentemente e culminou com a suspensão do X no Brasil. Tudo começou porque a plataforma
terá recusado uma ordem judicial para suspender menos de uma dezena de contas,
bem como para nomear um representante legal responsável pela operação no país,
mas rapidamente se transformou em mais um pretexto para Musk se afirmar como o
último bastião da defesa da liberdade de expressão, acima de qualquer
instituição democrática existente.
É que se Musk resolveu fazer do caso do
Brasil uma bandeira da sua luta pela liberdade de expressão absoluta, noutras
geografias o seu registo de aceitação de ordens judiciais para suspensão de
contas é bem diferente, tal como a sua reação à suspensão da
plataforma. Provavelmente jogando com a popularidade da rede no Brasil, e com a
própria popularidade da divisão política que tem marcado as últimas décadas do
maior país da América do Sul, Musk usou o caso para projetar uma imagem que não
corresponde à realidade.
Se no caso do Brasil considerou o pedido de suspensão de
contas uma “medida draconiana”, Musk é conhecido e reconhecido pela sua obediência às ordens judiciais e
políticas vindas da Índia e da Turquia — curiosamente, ou não, países onde a Tesla tem
planos de expansão. A título de exemplo, Musk terá sido expedito na suspensão
de todos os links para o documentário
da BBC sobre o
governo de Modi, em resposta a um pedido vindo diretamente do gabinete do
primeiro ministro indiano. E também terá suspendido sem apelo nem agravo contas de dissidentes políticos
críticos do regime de Modi. Entre os lesados desta política figuram
por exemplo dois grupos sedeados nos Estados Unidos da América: Hindus for
Human Rights e Indian American Muslim Council. Já no caso da Turquia e perante
a ameaça de suspensão da plataforma, Musk disse que preferiu suspender 4 contas
e limitar o alcance de 409 tweets, sem levantar tantas ondas como fez agora no
Brasil.
A explicação para a diferença de postura não é clara, e
poderá residir algures entre a síndrome
colonial que
muitas vezes pauta a ação das grandes empresas tecnológicas norte-americanas
face aos países da América do Sul – que teve o expoente máximo no famigerado
tweet de Musk em que dizia que faria golpes de estado onde quisesse em
referência a Evo Morales, presidente da Bolívia –, e a simpatia de Musk por
Bolsonaro. Claro é que, mais uma vez, Musk está a trocar qualquer governança
democrática, ou previsibilidade de ação, do X/Twitter por um conjunto de
decisões pessoais e ad hoc; a aproveitar a enorme fragmentação jurisdicional no
que toca à regulação das redes sociais a seu belo prazer, e a usar a
popularidade da sua plataforma como forma de expandir a sua mensagem, e de
tornar populares as suas posições.
Com tudo isto, também se tem tornado cada vez mais óbvio que
a habitual forma de fazer política e de regular serviços não parece funcionar
na internet – a suspensão
de serviços é difícil de implementar (especialmente num país como o
Brasil, com centenas de provedores de internet) e facílima de contornar. E o
máximo que se pode fazer é ameaçar com multas elevadas, como neste caso em que
o uso de VPN para aceder ao X pode valer uma multa avultada, o que altera o
ónus da responsabilidade e o faz recair diretamente sobre os cidadãos.
Musk dominou por completo um dos espaços de debate online
com maior tráfego, visibilidade, e no tempo da sua liderança tem implementado
mudanças difíceis de acompanhar e com um impacto impossível de medir. Mas
cingir a questão a uma reflexão sobre a pessoa é desprezar partes importantes
da história. Por um lado,
a passividade das democracias para, no quadro institucional, se protegerem
contra estes ataques; por outro a incapacidade de construir alternativas
realmente democráticas fundadas na sociabilidade que a internet permite.
A síndrome de Twitter
Pode parecer uma moda recente, mas a ideia de procurar
alternativas para o Twitter é tão longa quanto a sua popularidade. Os problemas
inerentes à centralização de uma rede social eram amplamente reconhecidos, até
dentro do Twitter, onde uma das alternativas descentralizadas nasceu — o Bluesky. Contudo, como por
esta altura já se terá tornado óbvio a dificuldade na mudança vai muito para
além da dimensão tecnológica.
Numa passagem do livro Maniac, Benjamin Labatut
escreve que pior do que não
ter fé, é perdê-la, porque deixa para trás um buraco por preencher.
E a experiência de deixar uma rede social é de alguma forma similar. Mais do que criar uma
alternativa ao X, a dificuldade está no preconceito de que o temos de
substituir. Criar uma rede social é hoje algo que praticamente qualquer
pessoa seria capaz de fazer seguindo tutoriais no Youtube; não tão fácil é
substituir o X em todas as dinâmicas sociais em que este se tornou central. Como ser o principal fornecedor de
imagens sobre tudo e a todo o instante para os noticiários, providenciar
conteúdo para nos emocionar, ter uma forma de disseminar mensagens rapidamente,
um espaço de comentário instantâneo e infinito e, no meio de tudo isto, ser capaz de
nos conferir uma sensação de pertença a alguma coisa no meio do frenético mundo
online através da teia de relações que nos foi permitindo criar ao longo dos
anos.
A ideia que as redes sociais alteram o nosso cérebro,
viciando-o em estímulos rápidos, likes e retweets, não deve surpreender ninguém
por esta altura, mas como as redes sociais alteram a psique coletiva é a
verdadeira questão neste caso. Não se trata de simplesmente imaginar outro X,
mas se no nosso mundo outro X seria possível, ou sequer desejável. Com todo o
peso que essa questão traz consigo.
Esperar
que por via da regulação e da aplicação de leis ad-hoc se resolvam os problemas da
desinformação, da extrema polarização, ou da falta de supervisão democrática
das decisões de Elon Musk (nem vamos falar mais do seu feed
absolutamente conspirativo ou do Grok, modelo de IA do X onde praticamente não
há limites no que pode ser gerado) é, neste momento, ingénuo. E, como vimos,
pode ter efeitos adversos indesejáveis, acicatando ainda mais a luta cultural e
deixando Elon Musk na posição preferencial de se poder vender como o guardião
da liberdade de expressão. É simplesmente tarde demais para este tipo de
solução, e esta plataforma parece completamente perdida.
Imaginar
uma mudança no X tem de começar desde logo por imaginar e encetar uma mudança
em toda a cultura da internet; na forma como as pessoas se
relacionam com a rede e se relacionam através da rede. É claro que para isso
acontecer existem detalhes tecnológicos e formas de fazer as coisas
preferenciais face a outras, mas focar o debate na questão técnica, ou imaginar
uma solução legal, é ignorar a mudança na psique coletiva causada pelo X. E a
dificuldade em singrar das alternativas como o Mastodon ou Bluesky é um sinal claro.
Utilizando qualquer uma das alternativas perceberemos que,
em termos funcionais, há pouco que as distinga da rede social incumbente, o que
distingue realmente é por um lado o ritmo da rede, e por outro a sua própria
centralidade no discurso público. Nestas alternativas não há ministros em
anúncios, ex-ministros em debates, as discussões acesas entre fações, nem
virais que cheguem aos telejornais. Mas isto não significa que, em algumas
instâncias, não haja nestas redes sociais toxicidade, desinformação ou polarização
extrema.
No fundo, essa é a grande lição deste momento, uma espécie
de lugar de assunção onde coletivamente teremos de chegar. Tal como quando se
trata de uma questão de adição, já não se trata pura e simplesmente de pensar a
sensação no momento da toma da substância aditiva, mas em todas as
transformações provocadas ao longo do tempo. Do mesmo modo, não basta
criminalizar o consumo ou sequer tentar parar com o fornecimento porque é
impossível. A mudança estrutural implica mudanças culturais e chegando a esse
ponto a questão que se coloca é, porque tão pouco pensamos nisso?
Porque chegamos a 2024 e pessoas e instituições continuam a alimentar o X como se
nada fosse, enquanto o seu dono aproveita a concentração gerada de pessoas para
disseminar teorias da conspiração, dog whistle e outro tipo de conteúdo
tóxico? Porque se pede a ação da lei, mas mesmo aqueles que estão mais
despertos para o problema continuam a alimentar a plataforma com conteúdo
interessante pelo qual vai valendo a pena manter a conta ativa? Porque nos
continuamos a organizar em torno de causas nesta plataforma liderada por um
inimigo assumido de muitas dessas causas?
Porque não olhamos para as redes como um serviço aditivo e as tratamos
como tal e, pelo contrário, continuamos a promovê-las acriticamente em todos os
momentos das sociedades contemporâneas?
A história dos movimentos de fonte aberta ou software livre
são um bom exemplo para refletirmos enquanto ensaiamos sobre esta mudança e
sobre os grandes obstáculos que se colocam. Adotar, por exemplo, o Gimp para fazer design, ou o Linux como sistema operativo, não se
trata apenas de uma escolha de consumo como outra qualquer. As estruturas de
propriedade e desenvolvimento destas opções estão intimamente ligadas aos seus
resultados, e para os aceitar é preciso estar disposto a abraçar uma nova
cultura, com novos hábitos, rituais e procedimentos. Com menos dinheiro
proveniente de capital de risco, menos engenheiros focados em tornar a
interface perfeita e confortável, com menos marketeers que otimizem até
ao mais ínfimo detalhe as mensagens para nos convencer à mudança, e com menos
estímulos para nos manter permanentemente ligados. Mas com mais liberdade para
agir, com mais empoderamento do utilizador, e com um sentido de propriedade coletiva
inatingível nos modelos proprietários.
Lamento não terminar como um plano de 10 passos para deixar
o X, uma lista de 5 alternativas, ou outra solução mágica qualquer. Mas, como
diz Keller Easterling, está
provavelmente na hora de percebermos que a busca por soluções mágicas é o
grande problema da humanidade. E, honestamente, o tempo que tenho
passado mais distante da plataforma tem-me feito perceber que, tal como uma
droga leve, na maioria das circunstâncias, o X não serve realmente para nada se
não para nos alimentar a imagem de nós próprios que criámos facilitados por
esta ferramenta. Com a hiperestimulação
a preencher o vazio deixado pela digitalização das relações sociais e a
falência dos espaços comuns e coletivos nas sociedades contemporâneas. A
única forma de ultrapassarmos os problemas que com esta experiência chegaram
não é procurando incessantemente outra plataforma, mas arranjando formas de nos
ligarmos para além destas, sem depender de nenhuma.
E isto não significa que instituições, políticos e leis não
tenham um papel a fazer, ou que devamos encolher os braços à espera do
apocalipse digital. Significa que, pelo contrário, essa ação deve ser
construtiva e começar pela base, e não deve ser vista como a resolução do
problema do X, mas como a
reconstrução de uma nova cultura digital. Não só é preciso
incentivar a utilização de protocolos que permitam a interoperabilidade adversa
(isto é, migrar os dados entre várias aplicações e usar a plataforma que mais
nos apeteça) mas toda uma cultura digital. Com novos modelos de propriedade, como
há muito pediam Jonas Staal e Jan Fermon no projeto Collectivize Facebook que
instava as Nações Unidas a ter um papel na governança online. E com uma visão
estruturada do que deve ser a internet focada na promessa original, da
partilha, da conexão e da rapidez, sem que o preço a pagar seja a centralização
e a captura dos dados…e o sequestro da nossa existência digital na mão do homem
mais rico do mundo. Afinal de contas, também o Twitter surgiu com estranheza e,
quando demos conta, este hábito já era mais forte que nós.
Fonte: Shifter, 11 de setembro de 2024
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