A "patética" Europa pode estar finalmente a acordar do sono militar
Perry Mason
(1957-1966) - Ralph Clanton, Joan Banks
Foi uma emboscada televisiva que muitos na Europa esperam que impeça uma
guerra.
A repreensão de Donald Trump ao presidente ucraniano
Volodymyr Zelensky, na Casa Branca, foi um golpe
para a aliança transatlântica, dissipando as ilusões que ainda
restam na Europa sobre se o primo americano estará ao seu lado para combater a
agressão russa.
A Europa pode ter finalmente recuperado o juízo sobre as
suas necessidades de autodefesa na era de Trump.
“É como se Roosevelt tivesse recebido Churchill (na Casa Branca) e começasse a intimidá-lo”, explicou o deputado europeu Raphaël Glucksmann à CNN.
Num mês em que o secretário da Defesa dos EUA, Pete Hegseth,
chamou a Europa de “patética” por “aproveitar-se da generosidade dos outros” na
Defesa, numa conversa de grupo num chat com responsáveis da administração (que
inadvertidamente incluiu um jornalista da The Atlantic), o velho continente tem vindo a quebrar tabus de décadas
sobre a Defesa. Estão em cima da mesa políticas que seriam
impensáveis há apenas algumas semanas.
A maior mudança ocorreu na Alemanha, a
maior economia da Europa. Após as eleições federais, o chanceler Friedrich Merz
ganhou uma votação no parlamento para acabar com o “travão da dívida”
constitucional da Alemanha - um mecanismo para limitar os empréstimos do
governo.
Em princípio, a alteração da
lei permite despesas ilimitadas com a Defesa e a Segurança. Os
especialistas esperam que esta medida permita desbloquear até 600 mil milhões
de euros na Alemanha durante a próxima década.
“Isto é uma mudança de paradigma na Europa, porque a
Alemanha era o país mais atrasado - especialmente entre os grandes países - no
que diz respeito à Defesa”, afirmou à CNN Piotr Buras, membro sénior do think
tank European Council on Foreign Relations.
Ao ultrapassar a sua fobia da dívida, Buras referiu que a
Alemanha agiu finalmente como se a Europa tivesse realmente passado por um “Zeitenwende”
- ou “ponto de viragem” - como descreveu o chanceler cessante Olaf Scholz em
fevereiro de 2022, apenas três dias após a invasão em grande escala da Ucrânia
pela Rússia.
Embora a invasão tenha abalado a Alemanha, “só o choque de
Trump fez com que tomassem esta decisão realmente fundamental de suspender o
travão da dívida”, observou Buras.
“Este é o verdadeiro Zeitenwende.”
Tabus a desmoronar
Na vizinha França, o presidente Emmanuel Macron - que há
muito defende a “autonomia estratégica” europeia em relação aos EUA - disse que
está a considerar estender a proteção do arsenal
nuclear aos seus aliados, já ostensivamente protegidos pelas bombas
americanas.
Os comentários de Macron no início do mês surgiram depois de
Merz ter defendido a realização de conversações com a França e o Reino Unido -
as duas potências nucleares da Europa - sobre o alargamento da sua proteção
nuclear. O primeiro-ministro polaco, Donald Tusk,
saudou a ideia e apelou mesmo a que a Polónia considerasse a possibilidade de
adquirir armas nucleares.
Entretanto, a Polónia e os Estados bálticos Estónia, Lituânia e Letónia - todos
vizinhos da Rússia - abandonaram o Tratado de Otava de 1997 sobre minas
terrestres, há muito considerado um marco fundamental no fim dos
conflitos armados em massa. A Lituânia já anunciou a
compra de 85 000 minas terrestres; a Polónia
pretende produzir 1 milhão no seu próprio país.
A Lituânia também se retirou este mês do
tratado internacional contra as munições de fragmentação,
tornando-se o primeiro signatário de sempre a fazê-lo.
O recrutamento militar também regressou ao continente. A Dinamarca
tornou as mulheres aptas para o recrutamento obrigatório a partir de 2026
e reduziu os requisitos de saúde para algumas funções, no âmbito de um reforço
das forças armadas do país. A Polónia também anunciou
planos para que todos os adultos do sexo masculino recebam formação militar.
Até mesmo países notoriamente neutros estão a reconsiderar
as suas posições. No meio de discussões sobre a forma de manter a paz na
Ucrânia em caso de acordo, o governo da Irlanda
- um país militarmente pouco ativo, centrado em operações de
manutenção da paz - apresentou legislação que
permite o envio de tropas sem a aprovação da ONU, contornando um
possível veto russo (ou americano).
Durante muito tempo, foi uma verdade incómoda - e muitas
vezes não dita - na Europa, que a sua proteção contra invasões dependia, em
última análise, da cavalaria americana que cavalgava no horizonte. Esse apoio
já não parece tão seguro.
O princípio fundamental vai para além de quem irá travar a
luta e de quem irá fornecer as armas. Alguns
começaram a questionar as futuras compras dos caças F-35, astronomicamente caros, fabricados nos EUA,
que várias forças aéreas europeias tinham planeado adquirir.
O ministro da Defesa português, Nuno
Melo, afirmou que Portugal estava a reavaliar as compras previstas
dos caças, dando preferência a alternativas europeias, devido a preocupações
com o fornecimento de peças sobressalentes controlado pelos EUA.
É a primeira vez que tais preocupações são expressas
publicamente a um nível tão elevado, especialmente a favor de aviões que, no
papel, não oferecem as mesmas capacidades.
União europeia?
Mas, embora a Europa pareça ter percebido a mensagem, falar
de uma abordagem unificada é prematuro.
Quando a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der
Leyen, revelou um plano para gastar mais milhares de milhões em defesa, chamado
“Rearmar a Europa”, Espanha e Itália recusaram.
Desde então, o plano passou a chamar-se “Prontidão 2030”.
A primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, também excluiu
a possibilidade de enviar tropas italianas como parte de um contingente europeu
para manter a paz na Ucrânia, caso haja um acordo negociado - outra questão
fundamental em que o continente está dividido.
A mudança de nome indica uma linha divisória na Europa:
quanto mais longe da Rússia está um país, menos provável é que ponha as armas à
frente da manteiga.
O primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez disse este mês
que “a ameaça não é a Rússia trazer as suas tropas para o outro lado dos
Pirenéus”. Sánchez pediu a Bruxelas que “tenha em conta que os desafios que
enfrentamos na vizinhança sul são um pouco diferentes dos que enfrentamos no
flanco leste”.
Gabrielius Landsbergis, ex-ministro dos Negócios
Estrangeiros da Lituânia, disse à CNN que estava
“aborrecido” com as declarações espanholas
e que uma recente viagem a Kiev - onde as sirenes dos ataques aéreos
soam quase todas as noites - tornou muito fácil imaginar cenas semelhantes a
ocorrer em Vilnius no futuro.
“Quanto mais a oeste se vai, mais difícil é imaginar este
tipo de coisas. Todos os problemas, todas as decisões, são relativos”, afirmou
Landsbergis.
Embora esta divisão geográfica possa aprofundar as divisões,
Buras, do ECFR, defende que a unidade total da Europa será sempre “uma ilusão”.
“O que realmente importa é o que os países-chave fazem”,
declarou, apontando para Alemanha, França, Reino
Unido e Polónia. “Quero ser cautelosamente otimista, mas acho que
estamos no caminho certo agora.”
Questionado sobre se março será recordado como o mês em que
a Europa acordou, Buras não tem dúvidas: “Sim,
acordámos - mas agora temos de nos vestir.”
Fonte: CNN Portugal, 31 de março de 2025
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