EUA enviam carta a empresas em Portugal para abandonarem políticas de diversidade
Perry Mason
(1957-1966) – Carole Mathews
Embaixada
está a rever contratos entre o governo norte-americano e empresas em Portugal,
o que inclui a certificação de que estas cumprem novas regras de Trump contra
programas de diversidade
O governo dos Estados Unidos enviou cartas a empresas em
Portugal que lhe fornecem bens e serviços a informar que estas devem
abandonarem os seus programas de diversidade, equidade e inclusão (DEI), em
cumprimento da ordem executiva assinada em janeiro por Donald Trump. O envio
das missivas foi confirmado ao ECO pela embaixada norte-americana em Lisboa,
sendo que, segundo a imprensa internacional, cartas semelhantes seguiram para
empresas noutros países da União Europeia, como França e Bélgica.
“A embaixada dos Estados Unidos em Portugal está a realizar
uma revisão global padrão dos contratos, que se aplica a todos os fornecedores
e beneficiários de subvenções do governo dos EUA. Este processo inclui um
pedido de certificação para garantir o cumprimento das leis norte-americanas
antidiscriminação”, indicou ao ECO fonte oficial da embaixada.
No coração deste processo de revisão dos contratos, está a
ordem executiva assinada a 21 de janeiro pelo presidente dos Estados Unidos,
Donald Trump, com vista a “acabar com a
discriminação ilegal e restaurar as oportunidades baseadas no mérito”.
De acordo com essa ordem, instituições “críticas e
influentes” da sociedade norte-americana, incluindo o próprio governo federal,
grandes empresas, instituições financeiras e instituições de ensino superior têm adotado “preferências perigosas, degradantes e
imorais com base em raça e sexo”, no âmbito de programas DEI, que
“podem violar os direitos civis”.
O documento assinado por Donald Trump argumenta ainda que
esses programas de DEI enfraquecem a “unidade nacional” dos Estados Unidos, uma
vez que “negam,
retiram crédito e minam os valores tradicionais americanos do trabalho árduo,
excelência e conquistas individuais”, ao mesmo tempo que privilegiam
um sistema “corrosivo” baseado em identidade. Ou seja, para Trump, qualquer
programa que promova a diversidade, equidade e inclusão choca contra a
meritocracia e é, portanto, uma forma de discriminação.
Com base nesses argumentos, o presidente dos Estados Unidos
ordenou, desde logo, o fim de todas as “preferências, mandatos, políticas,
programas, atividades e regulações” discriminatórios e com “preferências
ilegais” nos departamentos e agências do governo norte-americano.
Mas não se ficou por aí. Donald Trump mandou, além disso, que todas as agências sob a sua alçada fizessem cumprir os direitos civis norte-americanos e combatessem as políticas e programas de DEI “ilegais” no setor privado.
Assim, na ordem executiva em causa, ficou estabelecido, por
um lado, que em cada contrato seria incluída uma cláusula, na qual os
contratados reconhecem que cumprir estas regras relativas à diversidade é
“essencial para as decisões de pagamento” do governo norte-americano.
E, por outro lado, que seria obrigatório incluir uma
cláusula que exige que os contratados não operem programas que promovam a
diversidade, equidade e inclusão, “que violem as leis antidiscriminação
federais”.
Segundo a imprensa internacional, com base nesta ordem
executiva, a administração de Donald Trump tem estado a enviar cartas a várias
empresas da União Europeia (nomeadamente, em França e na Bélgica), a avisar que
têm, então, de cumprir as novas regras relativas à diversidade.
E a embaixada dos Estados Unidos em Lisboa confirmou ao ECO
que enviou missivas semelhantes a empresas a operar em Portugal com contratos
com o governo norte-americano. A embaixada não precisa, porém, quantas cartas
foram enviadas, nem revela que empresas são visadas.
Por outro lado, questionada
sobre a penalização que será aplicada, caso as empresas não cumpram
a ordem executiva, a embaixada dos Estados Unidos em Lisboa avança ao ECO que
não será feita qualquer verificação, além de pedir aos contratados que
autocertifiquem o cumprimento das normas em questão.
Fornecedores portugueses entre o silêncio, o desconhecimento
e a preocupação
O ECO questionou várias empresas portuguesas com contratos
com o governo norte-americano, mas parece haver
um manto de silêncio em torno
desta matéria.
Os registos do Federal Procurement Data System, onde constam
os contratos assinados entre entidades públicas norte-americanas e qualquer
fornecedor de serviços, consultados pelo ECO revelam que entre as empresas com
contratos aí registados, apenas no último ano, estão organizações como a Vodafone Portugal,
a Fidelidade,
uma empresa da Mota-Engil, uma da Galp, a Caetano Automotive, os CTT, a Allianz Portugal,
a Meo ou o escritório de advogados Rui Pena, Arnaut &
Associados (atualmente CMS
Portugal).
O ECO perguntou a estas e a outras entidades se tinham
recebido a missiva enviada pela embaixada norte-americana e o que iriam fazer
acerca disso. A esmagadora das empresas, pura e simplesmente, não respondeu,
mas algumas afirmaram mesmo não ter recebido nenhuma comunicação.
Uma das entidades que trabalha regularmente com entidades
públicas norte-americanas — e que não recebeu essa missiva — admitiu que o tema
estava fora do radar da empresa e está a gerar preocupação. Isto porque esta e
outras empresas têm vindo a desenvolver
programas robustos de DEI, até porque muitos dos seus parceiros o exigem,
e ficam agora numa situação complexa: manter o negócio com entidades públicas
norte-americanas ou arriscar perder negócio com outros parceiros e abandonar um
caminho de sustentabilidade no qual acredita?
Mas, afinal, que contratos são estes?
Há, sobretudo, três blocos.
O primeiro é relativo a serviços prestados à própria embaixada dos Estados
Unidos em Lisboa, e que naturalmente compra localmente. Aí há de tudo, desde os
serviços de telecomunicações da Vodafone a trabalhos de jardinagem ou aos
seguros de saúde da Allianz, passando pelos serviços de apoio jurídico da CMS.
Um segundo grande bloco são contratos nos Açores, relacionados com a
presença da Base das Lajes, com vários fornecedores locais, como vigilantes,
pessoal de limpeza, serviços de transporte e até uma funerária. Mas também a
Galp Açores, que vende combustível à base.
E há um terceiro bloco mais genérico, onde está, por exemplo, a relação
contratual entre a Fidelidade e a Força Aérea norte-americana, tendo por base a
cobertura por seguros. Ou a prestação de serviços da Meo à Defense Information
Systems Agency (DISA) ou, antes disso, à Força Aérea.
Quem não cumprir as regras, não é aceite como fornecedor?
Em teoria, os
Estados Unidos não têm direito de impor que as empresas da União Europeia
terminem os seus programas de diversidade, equidade e inclusão.
Mas, na prática, e
como se trata de “determinar as condições em que é possível as empresas
fornecerem bens ou serviços à administração norte-americana”, podem, sim, impor
regras. O esclarecimento é dado ao ECO pelo José Luís Cruz Vilaça, sócio
responsável pela área de prática de Direito da União Europeia, Concorrência e
Investimento Estrangeiro da Antas da Cunha Ecija. “Quem não cumprir as regras,
não é aceite como fornecedor”, sublinha o advogado.
Deste lado do oceano, muitos têm sido os apelos a políticas
de DEI, em prol de um futuro mais sustentável e
igualitário, o que coloca as empresas europeias agora “perante um
dilema”. De um lado, têm as orientações da União Europeia. Do outro, o risco
“perder o mercado da compra de produtos ou serviços pela Administração
norte-americana”, realça o sócio da Antas da Cunha Ecija.
“Basicamente, é uma questão política, onde a lógica do poder
e do direito se opõem. Os governos dos Estados-membros e instituições da União
Europeia acabarão por ser chamados a intervir e, se necessário, a retaliar. As
empresas europeias devem, essencialmente, mobilizar-se para obter o apoio
dessas instituições”, salienta José Luís Cruz Vilaça.
Mas nem todos os advogados têm este entendimento. Márcia
Martinho da Rosa, da MMR Legal Services e ex-membro da comissão de direitos
humanos da Ordem dos Advogados, defende que “estas cartas não são vinculativas,
uma vez que na União Europeia estas empresas regem-se pelos tratados
internacionais de cada Estado, o direito comunitário, nomeadamente os
regulamentos e as diretivas europeias”. “É inconcebível a ingerência dos EUA
nesta matéria no que aos Estados Membros diz respeito”, sublinha.
Já Luís Couto, sócio da SPCB Legal, está entre estas duas
posições, e esclarece que, primeiro, há que determinar qual o ordenamento
jurídico que regulará a relação contratual estabelecida entre as empresas
europeias e o governo norte-americano.
“Sendo o negócio jurídico celebrado com a Administração
norte-americana regulado pela lei portuguesa ou comunitária, não é possível a
imposição da ‘ordem executiva’ em causa. Coisa diversa se passa relativamente
aos negócios jurídicos que, pela aplicação das normas de conflito são regulados
pela lei norte-americana. Neste caso, poderá impor-se essa condição de
contratação com os fornecedores de bens e serviços”, explica.
Fonte: Eco, 7 de abril de 2025
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