Macron tem pelo menos uma razão para estar otimista, os alemães estão finalmente a acordar e o Reino Unido vem já atrás. "Estamos na direção certa"

 

Perry Mason (1957-1966) - Andra Martin, Terry Becker

— Só para que percebam: a Europa está a emprestar dinheiro à Ucrânia e está a reaver o seu dinheiro…

— Não, na verdade, para ser franco, nós pagámos 60% do esforço total e isso, como no caso dos EUA, foi através de empréstimos, garantias, bolsas [...]. Temos 230 mil milhões [de euros] em bens russos congelados, mas não são nossos, são bens congelados [...]. Se, no final do dia, nas negociações que vamos ter com a Rússia, eles estiverem prontos para nos dar [esse dinheiro], perfeito – no final do dia, a Rússia terá pagado por isso.

— Se acredita mesmo nisso, por mim tudo bem.

Foi este o momento que mais manchetes fez em todo o mundo no rescaldo de um encontro entre os presidentes norte-americano e francês em Washington DC na segunda-feira, dia em que se marcaram os três anos da invasão russa em larga escala da Ucrânia.

Numa conferência de imprensa na Casa Branca, e para desagrado do seu anfitrião, Emmanuel Macron interrompeu Donald Trump para o corrigir sobre o apoio financeiro da União Europeia (UE) a Kiev. Esse pareceu, contudo, ser um pequeno revés num dia aparentemente prazeroso, cheio de sorrisos e elogios, com Macron a referir-se várias vezes ao “querido Donald” e Trump a destacar como “Emmanuel é uma pessoa muito especial”.

Macron e Trump têm uma relação muito interessante e houve uma atmosfera jovial até”, diz à CNN Portugal Julien Hoez, especialista em geopolítica e editor do The French Dispatch. “O problema é que nunca se sabe se Trump é suficientemente tolo para acreditar no que diz ou se um conselheiro lhe diz coisas e ele simplesmente não sabe fazer melhor.”

“Resisto a ver cada passo, cada comentário, cada encontro como uma grande mudança numa ou noutra direção”, acrescenta Marta Mucznik, analista de assuntos europeus no International Crisis Group. “Mesmo no ICG estamos menos preocupados com a espuma dos dias, porque hoje o Trump diz que o Zelensky é que começou a guerra e amanhã já diz que afinal foi Putin.”

A verdade, adianta Hoez, “é que Trump pareceu não se importar” com a correção de Macron e limitou-se a repetir o que tinha dito em primeira instância. E mesmo com todas as análises sobre o “cauteloso otimismo” pós-encontro, em particular quanto à Ucrânia, “a verdade também é que ainda não sabemos o que é que eles abordaram antes dessa conferência de imprensa, e isso é que é importante”, considera o analista francês. “Ficarei mais otimista quando vir o relatório dessa reunião.”

Foram três horas à porta fechada, seguidas da conferência e de uma entrevista de Macron à Fox News onde se disse otimista quanto a uma trégua entre a Ucrânia e a Rússia – uma que, nas suas palavras, pode estar à distância de “semanas” – e onde declarou que a eleição de Trump veio “mudar o jogo” internacional. Entre uma coisa e outra, a alguns quilómetros de DC, os EUA votavam na sede da ONU, em Nova Iorque, contra uma resolução de apoio à Ucrânia – a primeira vez que os norte-americanos alinharam com a Rússia nas Nações Unidas desde 1945.

“As grandes questões continuam a colocar-se: qual o plano de Trump para acabar com a guerra na Ucrânia como tem prometido? Como vai a Europa, ou esta nova coligação de Estados aliados da Ucrânia, reagir? Como podem participar no processo e convencer a administração Trump a participar?”, destaca Mucznik. “E como vão os europeus preparar-se para esta nova ordem de segurança europeia em que a Rússia continuará a representar uma ameaça?”

"Não se pode confiar no que a Rússia diz" - nem em Trump

Com todos os impensáveis e inéditos desde a tomada de posse de Trump a 20 de janeiro, está quase tudo no ar quanto ao futuro da Ucrânia, das relações transatlânticas e da futura arquitetura de segurança europeia também após este encontro – um que, segundo Macron, terminou com um consenso sobre a necessidade de qualquer acordo de paz incluir o destacamento de tropas de manutenção de paz para a Ucrânia (algo que Moscovo tem rejeitado liminar e consistentemente desde a invasão em larga escala).

“[As tropas] não estariam nas linhas da frente, não fariam parte do conflito, estariam ali para assegurar que a paz é respeitada”, disse o presidente francês na Sala Oval. Ao seu lado, Trump anuiu e adiantou que o presidente russo está de bem com essa premissa. “Coloquei-lhe especificamente essa questão, ele não tem qualquer problema com isso.”

No dia seguinte, o porta-voz do Kremlin pôs rapidamente os pontos nos is, dizendo aos jornalistas em Moscovo que o Kremlin não tem nada a acrescentar à posição já transmitida pelo ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov há uma semana, quando disse que qualquer força da NATO “sob a bandeira da UE ou sob bandeiras nacionais” seria “inaceitável”.

Não se pode realmente confiar no que a Rússia diz, especialmente no que respeita à guerra na Ucrânia”, defende Julien Hoez, que considera ser “inteiramente possível” virmos a ter tropas europeias no país parcialmente ocupado. “A Europa está à frente dos EUA em termos de apoio total à Ucrânia – 132 mil milhões de euros, mais os 3,5 mil milhões adicionais que acabaram de ser anunciados, contra 114 mil milhões dos norte-americanos. Isso vai depender muito de os principais Estados-membros da UE dizerem ‘custe o que custar, vamos colocar as nossas forças na Ucrânia’. A Europa pode fazê-lo se realmente quiser, é apenas uma questão de saber se os líderes europeus estão prontos para isso.”

Para já, apenas França, Reino Unido e Polónia mostraram disponibilidade para tal, “o que não ajuda muita gente”, assume Hoez. “Mas se se concretizar, o que vai acabar por acontecer é que a Rússia vai ter de aguentar e lidar com isso – a Rússia não é suicida o suficiente para declarar guerra a toda a Europa. A grande questão é como podemos fazê-lo tendo os americanos a apoiar a Rússia.”

Como destaca Marta Mucznik, “no fundo o que Macron e Keir Starmer vão agora tentar procurar é esse apoio americano no contexto do envio de tropas de manutenção de paz, mas sabemos que Putin nunca vai aceitar isso, que é exatamente o que Zelensky pede – defesa coletiva e esse compromisso com a segurança”.

A analista do Crisis Group refere a ideia alternativa que também tem circulado sobre “ter não tropas de manutenção de paz, mas contingentes militares em posições estratégicas dentro da Ucrânia”, que é outra linha vermelha para a Rússia. “É, aliás, por isso que Putin não quer a adesão da Ucrânia à NATO e, portanto, não estou a ver como vai Trump arrancar essa concessão de Putin num eventual processo de paz, não estou a ver como é que essa promessa se pode concretizar. É por isso que tenho colocado a mim própria esta questão: se nem a Ucrânia nem a Rússia estão a ceder nas suas linhas vermelhas, o que vai Trump fazer para aproximar as duas posições?”

"O espírito de de Gaulle apoderou-se dos alemães"

À primeira vista, e sem se saber ao certo tudo o que foi conversado por Trump e Macron à porta fechada, Julien Hoez considera como “uma das coisas mais importantes” a sair deste encontro algo que não tem diretamente a ver com a guerra em curso no leste da Europa.

“Macron aparentemente fez questão de dizer que não há nada a ganhar com uma guerra comercial entre EUA e UE, não apenas porque todos vão perder [economicamente] com isso, mas também porque, se houver uma guerra, a Europa não terá o dinheiro para aumentar a despesa com Defesa que Trump está a exigir”, refere o analista francês. “É uma pescadinha de rabo na boca. É possível que Macron tenha conseguido lançar as bases para evitar esta guerra comercial, mas ninguém sabe ao certo para já.”

As movimentações dos últimos dias, ao ritmo frenético que tem pautado a geopolítica desde o retorno de Trump à Casa Branca, não se cingem a Washington. Na véspera da visita de Macron aos EUA, e após as primeiras projeções à boca de urna confirmarem a vitória de Friedrich Merz nas legislativas antecipadas da Alemanha, o futuro chanceler alemão fez um discurso duro e praticamente inédito vindo de Berlim, em que quase assinou o certificado de óbito da NATO e defendeu a “independência” da UE em relação à América de Trump.

“A minha prioridade absoluta será fortalecer a Europa o mais rapidamente possível para que, passo a passo, possamos realmente alcançar a independência dos EUA”, disse o líder conservador no domingo à noite. “Nunca pensei ter de dizer uma coisa destas num programa de televisão, mas depois das declarações de Donald Trump na semana passada, é evidente que os americanos, pelo menos esta parte dos americanos, esta administração, são em grande parte indiferentes ao destino da Europa.”

“O problema com a situação de Merz é que há muito a depender de coisas que estão fora do controlo dele, inclusivamente perceber quem vai liderar o SPD após Scholz e o que vai acontecer se Os Verdes ou A Esquerda estiverem envolvidos nas negociações de coligação”, destaca Julien Hoez, que apesar de tudo aponta “bons sinais”, como o facto de “Scholz estar de saída e o FDP, que não deixou que se fizesse nada, ter deixado de existir” no Parlamento alemão.

“Mais uma vez, estamos a avançar na direção certa”, admite o especialista. “Alguns colegas têm estado a fazer piadas sobre os alemães estarem possuídos pelo espírito de Charles de Gaulle. É bom que estejam a levar isto a sério, é bom começarmos a ouvir a linguagem que temos vindo a utilizar há uma década agora na boca de um chanceler alemão, quando diz que não podemos confiar nos americanos. Finalmente, os alemães estão a acordar.”

"Esperar para ver"

Merz não é o único a dizê-lo. Se nas primeiras semanas do sismo Trump ninguém parecia saber como reagir ao abalo, são agora vários os líderes que assumem esta posição, incluindo o presidente português, que na terça-feira falou em “antigos aliados” ao referir-se aos EUA, questionando a sustentabilidade da aliança atlântica no atual contexto. “Já se percebeu que está difícil convencer os aliados – ou antigos aliados norte-americanos, nunca se percebe bem com esta nova administração – a participarem nesse esforço de segurança, seria só a Europa a participar”, disse Marcelo Rebelo de Sousa sobre o potencial destacamento de tropas para a Ucrânia.

E continuou: “Não se percebe sequer se os Estados Unidos aceitariam [dar] apoio fora das fronteiras do território da Ucrânia, em países vizinhos pertencentes à NATO. Depois, temos de perceber se a NATO é para levar a sério ou não, porque se a América tem reservas, na prática, em relação ao seu envolvimento quanto à Ucrânia, até que ponto é que isso reforça ou enfraquece a NATO?”

Com esta e outras incógnitas a ocupar inteiramente os líderes ocidentais (à exceção de Trump), Macron tem sido o grande caçador de potenciais respostas na forma de uma coligação de países à margem da UE e da aliança atlântica que, na semana passada, estiveram reunidos em Paris. Como explicou na partida para Washington, o presidente francês consultou os líderes de 30 países – alguns Estados-membros da UE e aliados que mantêm esse estatuto, como o Canadá e o Reino Unido – para apurar a sua disponibilidade para continuar a apoiar a Ucrânia nesta fase.

Não se trata de uma coligação substituta da UE, é mais uma coisa militar ao estilo da NATO, mas em que os elementos pró-Rússia do bloco, que estão sempre a interromper tudo ao nível da UE, estão excluídos”, refere Hoez. “Mas há tantas questões também aqui: será que vai substituir a NATO? Ou o Canadá vai aderir à UE? Quem é que sabe nesta altura? O importante é que os líderes estão à mesa, a tentar perceber como apoiar a Ucrânia e como lidar com Trump, com Putin e com toda esta confusão. Se Macron tiver realmente razões para estar otimista, há uma hipótese de Trump conter a sua retórica agressiva em relação à Defesa europeia.”

Acima de tudo, acrescenta Marta Mucznik, tudo isto mostra “o renovado sentido de urgência entre os europeus para coordenar posições, para garantir que não há acordos à revelia da UE, e uma renovada ambição em procurar soluções rápidas para apoiar a Ucrânia e investir em Defesa”. “Parece haver agora uma consciência maior dos atores envolvidos, sobretudo de França e do Reino Unido.”

Amanhã, é a vez de Keir Starmer, primeiro-ministro britânico, visitar também ele Washington para encontros de alto nível com a administração Trump, incluindo com o presidente. Em jeito de antecipação desse encontro, Londres anunciou esta semana o maior aumento de despesa com Defesa desde a Guerra Fria, para os 2,5% do PIB em 2027 (metade do que os EUA estão a exigir aos europeus neste momento).

“Espero bem que consigam, é um aumento de 2,5% do PIB, 4 mil milhões de libras extra por ano, sem contar com os gastos com os serviços de informação”, responde Julien Hoez quando confrontado com a notícia. “Em geral, estamos a mover-nos todos na direção certa e há uma nova aliança a ser construída fora da NATO. É esperar para ver.”

Fonte: CNN Portugal, 26 de fevereiro de 2025

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