Somos o porquinho mealheiro do mundo

Perry Mason (1957-1966) – Walter Coy, Ruta Lee

Num contexto de instrução básica mais desenvolvida, as declarações de Donald Trump sobre roubos seriam tomadas como dislates ridículos, dignos de chacota global e piadas de cabaret. No entanto, no seio da cultura contemporânea — atravessada por um ethos “woke” que tende ao estreitamento cognitivo, à subordinação dos factos à lógica da ideologia e à personalização messiânica da liderança política — tais declarações ressoam como sinos celestiais da Verdade.

“Estão a derrotar-nos economicamente. … Não são nossos amigos, acreditem. Mas estão a matar-nos economicamente.”

Num discurso de 2015, Trump acusava Japão, China e México

“A China está a ficar com os nossos empregos, o nosso dinheiro, a nossa base, a nossa indústria transformadora… É um dos maiores roubos da história do mundo o que tiraram ao nosso país.”

Numa entrevista em 2015

“Somos o porquinho mealheiro do mundo. Fomos enganados pela China. Fomos enganados pela... União Europeia... fomos enganados por toda a gente.”

Durante um comício em 2018 em Great Falls, Montana

“Os EUA são explorados há 40 anos... Não podem entrar e roubar-nos o dinheiro, roubar-nos os empregos... esperando não ser punidos. Estão a ser punidos com tarifas.”

Em 2025, na sua tomada de posse

"Fomos roubados por décadas por todos os países da face da Terra, e não vamos deixar isso acontecer mais."

Num discurso ao Congresso dos EUA em março de 2025

Uma breve História do Capitalismo sob a exploração e dominação global pelos EUA

O capitalismo, enquanto sistema económico, tem sido marcado pela propriedade privada, pela procura do lucro e pela concorrência de mercado — mas a sua expansão, particularmente sob a liderança dos EUA, baseou-se frequentemente na exploração, na coerção e no imperialismo.

1. Fundamentos coloniais do capitalismo americano (1600–1776)

O capitalismo nos Estados Unidos tem raízes profundas na era colonial, assentando em dois pilares fundamentais: o colonialismo de povoamento e a escravatura.

Desde o início do século XVII, os colonos europeus, sobretudo britânicos, estabeleceram-se em terras indígenas, frequentemente através da violência, da expropriação e de tratados desiguais. Este colonialismo de povoamento não apenas expulsou as populações nativas dos seus territórios ancestrais, como também abriu espaço para uma economia agrária altamente lucrativa, baseada na monocultura de exportação.

Paralelamente, as colónias funcionavam dentro de um sistema mercantilista imposto pela Coroa britânica. Nesse modelo, os territórios coloniais eram essencialmente fornecedores de matérias-primas para a metrópole, ao mesmo tempo que se viam obrigados a consumir os produtos manufaturados provenientes da Grã-Bretanha. Esta relação comercial assimétrica beneficiava claramente os interesses da potência colonial, travando o desenvolvimento industrial autónomo nas colónias e assegurando a sua dependência económica.

Para garantir a produtividade das plantações — especialmente de tabaco, arroz, açúcar e algodão —, os colonos no sul recorreram massivamente à escravatura africana. A mão-de-obra escravizada foi o motor que impulsionou a acumulação primitiva de capital no continente americano, criando uma estrutura económica baseada na exploração extrema e na desumanização sistemática de milhões de pessoas.

Estes fundamentos — apropriação de terras, escravatura e dependência mercantilista — foram os alicerces sobre os quais se começou a construir o capitalismo nos futuros Estados Unidos da América.

2. Capitalismo industrial e expansão dos EUA no século XIX

Durante o século XIX, os Estados Unidos consolidaram a sua transição para uma potência industrial e imperial, combinando expansão territorial com aprofundamento do sistema capitalista. Este processo teve como pilares a ideologia do Destino Manifesto, o capitalismo esclavagista e uma nova doutrina de política externa voltada para a hegemonia no continente americano.

2.1. Destino Manifesto e expansão territorial

A ideologia do Destino Manifesto, cunhada em meados do século XIX, sustentava que os Estados Unidos tinham uma missão divina de expandir a civilização e a democracia para o Oeste e além. Sob esse pretexto, o país alargou as suas fronteiras através da expropriação violenta de territórios indígenas e da anexação de vastas regiões que pertenciam ao México — incluindo o Texas, a Califórnia, o Arizona e o Novo México —, após a guerra de 1846–1848. Esta expansão foi acompanhada de genocídio cultural e físico dos povos nativos e do reforço das estruturas económicas de tipo colonial.

2.2. Capitalismo esclavagista no Sul

Enquanto o Norte industrializava-se, o Sul manteve uma economia agrária dependente da escravatura. Quase quatro milhões de africanos escravizados sustentavam a produção de algodão, que se tornaria a principal matéria-prima das fábricas têxteis inglesas e do comércio global. A exploração do trabalho forçado permitiu a acumulação de capital tanto nos EUA como na Europa, tornando a escravatura um pilar essencial do capitalismo global da época. A abolição da escravatura, com a Guerra Civil (1861–1865), não eliminou a lógica da exploração, mas sim transformou-a em novas formas de dominação racial e económica.

2.3. A Doutrina Monroe (1823): o nascimento do quintal americano

Proclamada pelo presidente James Monroe a 2 de dezembro de 1823, a Doutrina Monroe estabeleceu três princípios: a rejeição de novas colonizações europeias no continente americano, a não-intervenção europeia nos assuntos das repúblicas independentes das Américas, e a promessa de que os EUA também não se envolveriam em conflitos europeu

Na prática, no entanto, a doutrina serviu para afirmar a hegemonia dos Estados Unidos sobre a América Latina, transformando a região na sua "esfera de influência". Esta pretensa defesa da soberania das Américas viria a justificar, ao longo do tempo, intervenções militares, manipulações políticas e controlo económico.

2.4. Evolução imperial: do “Destino Manifesto” ao “Big Stick”

Durante o século XIX, a Doutrina Monroe foi reinterpretada para sustentar a expansão imperial dos EUA. A anexação do Texas, a guerra contra o México e a ocupação de Cuba são exemplos claros. Em 1904, Theodore Roosevelt acrescentaria o Corolário Roosevelt à doutrina, declarando que os EUA tinham o direito de intervir militarmente nos países latino-americanos para “proteger” os seus interesses. O exemplo mais notório foi a intervenção na República Dominicana em 1905, com o controlo das alfândegas, e a ocupação prolongada de Cuba.

2.5. Impacto na América Latina

A Doutrina Monroe serviu, ao longo do século XX, como pretexto para:

Golpes de Estado apoiados pelos EUA, como na Guatemala (1954) e no Chile (1973);

Ocupações militares, como na Nicarágua (1912–1933) e no Haiti (1915–1934);

Dominação económica através de empresas como a United Fruit Company, símbolo da dependência e da exploração externa.

2.6. Reações latino-americanas

A crescente ingerência norte-americana levou à formulação de doutrinas alternativas, como a Doutrina Calvo, proposta em 1868 pelo jurista argentino Carlos Calvo. Esta defendia o direito dos Estados soberanos de resolverem os seus conflitos internos sem interferência estrangeira, especialmente de potências imperialistas. "Os Estados soberanos têm o direito de resolver seus conflitos internos sem intervenção militar ou diplomática estrangeira."

2.7. Relevância atual da Doutrina Monroe

No século XXI, apesar de reformulada, a lógica da Doutrina Monroe continua presente. Os EUA mantêm sanções económicas contra países como a Venezuela, apoiam governos aliados como os da Colômbia e do Equador e manifestam forte oposição à crescente influência da China na região, como demonstrado pela pressão exercida contra países que assinaram acordos com empresas como a Huawei.

2.8. Conclusão

Apesar de apresentada como um escudo contra o colonialismo europeu, a Doutrina Monroe revelou-se, na prática, um instrumento duradouro de dominação económica, política e militar dos Estados Unidos sobre a América Latina. Combinada com o expansionismo interno e o uso estratégico da escravatura, ela compõe um capítulo central da história do capitalismo americano — profundamente marcado pela violência, pelo racismo e pela instrumentalização da soberania alheia.

3. A ascensão do imperialismo americano (final do século XIX - início do século XX)

O final do século XIX marcou uma viragem decisiva na política externa dos Estados Unidos, que passou da expansão continental para o imperialismo ultramarino. A Guerra Hispano-Americana de 1898 foi o ponto de inflexão: os EUA derrotaram a Espanha e anexaram Porto Rico, Guam e as Filipinas, dando início a uma nova fase de exploração de territórios em busca de recursos e mercados. Esta guerra, sob o pretexto da libertação de Cuba, foi, na realidade, o primeiro grande passo do imperialismo americano no exterior.

3.1. O “Império das Bananas” e o imperialismo corporativo

Neste contexto emergiu um fenómeno particular: as chamadas "Repúblicas das Bananas", termo cunhado para descrever países da América Central e das Caraíbas cuja soberania foi corroída por interesses empresariais norte-americanos — especialmente os da United Fruit Company (UFCO), hoje conhecida como Chiquita Brands. Fundada em 1899 por fusão de várias companhias de frutas, a UFCO transformou-se num verdadeiro “Estado dentro do Estado” em países como Honduras, Guatemala e Costa Rica.

O modelo de negócios da empresa era colonialista: adquiria vastas extensões de terra, construía infraestruturas (portos, caminhos-de-ferro, linhas telegráficas) exclusivamente voltadas para a exportação, e negociava acordos com ditadores locais que lhe garantiam isenções fiscais e privilégios. Em 1930, controlava 70% das exportações de banana da América Latina. Os trabalhadores eram frequentemente pagos em moeda própria da empresa, criando uma espécie de escravatura assalariada baseada na dívida.

3.2. Honduras (1911): quando os fuzileiros defendem empresas

O caso hondurenho, em 1911, é emblemático. Endividado com bancos britânicos e americanos (cerca de 4 milhões de libras, o equivalente a 500 milhões de dólares atuais), o governo do presidente Miguel Dávila tentou resistir ao domínio da UFCO, limitando concessões e propondo aumentos de impostos. Em resposta, a empresa, em conluio com bancos americanos como o J.P. Morgan e o Kuhn Loeb, pressionou Washington para intervir.

Um banco de Nova Iorque, aliado à UFCO, propôs um empréstimo condicionado à entrega da receita alfandegária hondurenha ao controlo dos EUA. Perante a recusa de Dávila, os EUA financiaram e armaram uma rebelião do ex-presidente Manuel Bonilla. Em janeiro de 1911, os seus homens atacaram com apoio logístico e armas americanas. Em março, fuzileiros navais desembarcaram nas Honduras sob o pretexto de proteger “vidas e propriedades americanas”.

Na realidade, o objetivo era proteger os interesses da UFCO. Dávila foi forçado a demitir-se. O novo governo, chefiado por Bonilla, assinou o Tratado Knox-Castrillo (1911), entregando a receita alfandegária do país aos bancos americanos e restaurando todos os privilégios fiscais e fundiários da empresa. As Honduras tornaram-se assim a primeira verdadeira “República das Bananas” — um país cujo funcionamento era subordinado ao lucro de uma corporação estrangeira.

3.3. Guatemala (1954): a CIA ao serviço da fruta

Décadas depois, a Guatemala tornou-se palco de um dos golpes mais notórios da Guerra Fria. Após a Revolução de 1944, que derrubou a ditadura de Jorge Ubico, o país iniciou um período democrático liderado por Juan José Arévalo (1945–1951) e depois por Jacobo Árbenz (1951–1954). Árbenz lançou uma reforma agrária (Decreto 900) que redistribuiu terras não utilizadas — incluindo as da UFCO — a mais de 100 000 famílias camponesas. A UFCO, que detinha 42% das terras agrícolas, mas usava apenas 2%, foi indemnizada com base nos valores fiscais que ela própria declarava (1,2 milhões de dólares), embora alegasse que as terras valiam 16 milhões.

A empresa reagiu com uma campanha feroz de lobby em Washington. As conexões eram evidentes: o secretário de Estado John Foster Dulles fora advogado da UFCO; o diretor da CIA Allen Dulles fora membro do conselho da empresa; e o chefe de relações públicas da UFCO, Ed Whitman, era casado com a secretária de imprensa do presidente Eisenhower.

Lançou-se então a Operação PBSUCCESS (1954), uma campanha de desinformação, sabotagem e guerra psicológica. A CIA treinou mercenários liderados por Carlos Castillo Armas, criou uma rádio falsa (“La Voz de la Liberación”) e mobilizou aviões para bombardear a capital. A marinha americana bloqueou os portos. Árbenz demitiu-se a 27 de junho de 1954, temendo uma invasão em grande escala.

Castillo Armas assumiu o poder, revogou as reformas, devolveu as terras à UFCO, baniu sindicatos e partidos de esquerda e iniciou uma purga violenta contra os apoiantes de Árbenz. A repressão lançaria o país numa longa guerra civil (1960–1996), durante a qual mais de 200 000 indígenas maias seriam massacrados.

3.4. Legado e importância atual

A intervenção na Guatemala demonstrou que, para proteger os interesses das suas corporações, os EUA estavam dispostos a derrubar democracias, manipular a opinião pública e usar a CIA como braço armado do capital. O discurso anticomunista serviu apenas de fachada. A lógica era simples: quando os lucros são ameaçados, a democracia é descartável.

Este modelo de intervenção não desapareceu: reinventou-se sob outros nomes — “livre comércio”, “ajustes estruturais”, “parcerias estratégicas” — mas a lógica permanece. Empresas continuam a influenciar governos e políticas, e os interesses económicos determinam a política externa. A história da UFCO mostra como o imperialismo americano do século XX não foi apenas militar ou diplomático, mas também corporativo, com empresas a moldar destinos nacionais ao serviço de acionistas — e com a bandeira dos EUA ao fundo.

4. Ditadores subornados: A UFCO financiou esquadrões da morte na Colômbia (por exemplo, os paramilitares da AUC)

A United Fruit Company (UFCO) — atual Chiquita Brands — não se limitou a explorar trabalhadores agrícolas: financiou ativamente esquadrões da morte paramilitares na Colômbia, incluindo as Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), para reprimir movimentos laborais, deslocar comunidades camponesas e manter o controlo sobre as lucrativas plantações de banana.

4.1. Contexto: O domínio da UFCO na Colômbia

Desde as décadas de 1920 até ao início dos anos 2000, a UFCO/Chiquita exerceu controlo económico e logístico sobre amplas regiões bananeiras da Colômbia, como Urabá e Magdalena. Nessas zonas, os trabalhadores organizavam greves e exigiam salários dignos, direito à sindicalização e acesso à terra — exigências que punham em risco os lucros da empresa. Paralelamente, grupos guerrilheiros de esquerda, como as FARC e o ELN, identificavam a UFCO como símbolo da exploração estrangeira e alvo legítimo da sua luta armada.

4.2. A resposta corporativa: financiar os esquadrões da morte

Em vez de negociar com os trabalhadores ou adotar práticas justas, a empresa optou por financiar secretamente forças paramilitares de extrema-direita. Através de "acordos de segurança", a UFCO/Chiquita transferiu dinheiro, apoio logístico e, alegadamente, armas para grupos armados que se especializavam em:

Assassinar dirigentes sindicais;

Expulsar populações camponesas das suas terras;

Assegurar rotas comerciais e propriedade fundiária para a empresa.

4.3. AUC: o braço armado do lucro corporativo

As Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) foram classificadas como organização terrorista pelos Estados Unidos entre 1997 e 2006. Durante esse período, foram responsáveis por massacres, tortura, deslocações forçadas e tráfico de droga. Em troca de pagamentos regulares, protegiam os interesses de multinacionais como a Chiquita.

Os pagamentos da Chiquita (1997–2004)

Em 2007, a própria empresa admitiu num tribunal dos EUA que pagou cerca de 1,7 milhões de dólares à AUC, sob a forma de "taxas de segurança". Esses fundos foram canalizados para a compra de armas, munições e equipamentos logísticos (como rádios e veículos) usados em operações contra civis.

Massacres associados

As regiões sob controlo da UFCO/Chiquita registaram mais de 4000 mortes entre 1997 e 2004. Um dos casos mais emblemáticos foi o massacre de Chengue (2001), em que 24 residentes foram brutalmente assassinados com martelos e catanas numa aldeia próxima de plantações da Chiquita.

A cumplicidade de Washington

A UFCO/Chiquita contou com apoio político e diplomático dos EUA durante décadas. O Departamento de Estado atuou, por vezes, como advogado informal da empresa, pressionando governos latino-americanos contra reformas fiscais ou laborais. O caso mais conhecido foi o golpe de 1954 na Guatemala, quando a CIA derrubou o presidente Jacobo Árbenz após pressão da UFCO, que se opunha à redistribuição de terras improdutivas.

Justiça adiada, impunidade garantida

Apesar das provas evidentes, a punição à Chiquita foi simbólica: em 2007, a empresa foi multada em 25 milhões de dólares, um valor irrisório comparado aos lucros obtidos. Nenhum executivo foi preso. As ações da empresa quase não sofreram impacto. As vítimas, por sua vez, continuam a aguardar justiça. Famílias colombianas processaram a Chiquita novamente em 2024, mas os tribunais norte-americanos continuam a adiar os processos.

4.4. Conclusão: um caso exemplar de imperialismo corporativo

A história da UFCO/Chiquita é mais do que um caso de exploração laboral: é um exemplo paradigmático de imperialismo económico sustentado pela violência paramilitar e protegido por sistemas jurídicos complacentes. Demonstra como multinacionais podem financiar assassinos para garantir o controlo de territórios e lucros, com total impunidade — um modelo de atuação que continua, sob outros nomes e disfarces, até aos dias de hoje.

5. Diplomacia do Dólar: Como os bancos e as empresas americanas impuseram a dominação económica na América Latina

A Diplomacia do Dólar foi uma estratégia central da política externa dos Estados Unidos no início do século XX, que substituiu o colonialismo direto por uma forma sofisticada de dominação económica. Desenvolvida durante a presidência de William Howard Taft (1909–1913), esta política baseava-se numa premissa simples, mas poderosa: os bancos norte-americanos concederiam empréstimos aos governos da América Latina e das Caraíbas, e, em caso de incumprimento, os EUA interviriam política ou militarmente para garantir o pagamento.

Em contrapartida, empresas americanas obtinham concessões privilegiadas — direitos de mineração, controlo de portos e canais, monopólios sobre infraestruturas e mercados. A dívida tornou-se, assim, uma arma imperial, transformando países formalmente soberanos em protetorados financeiros ao serviço do capital estrangeiro.

5.1 Mecanismos centrais da Diplomacia do Dólar

a) Armadilhas da dívida e diplomacia da canhoneira

Exemplo: Nicarágua (1911–1933)

Os bancos Brown Brothers e J.P. Morgan emprestaram 15 milhões de dólares à Nicarágua para saldar dívidas com credores britânicos. Quando o governo nicaraguense falhou os pagamentos, os EUA assumiram o controlo direto da sua receita alfandegária (1911). No ano seguinte, enviaram tropas e ocuparam o país militarmente até 1933. Como resultado, impuseram regimes favoráveis a Washington, incluindo a ascensão de Anastasio Somoza, que se tornaria ditador em 1936. A dinastia Somoza governaria o país durante 43 anos, com apoio constante dos EUA.

b) Privatização forçada

Exemplo: Haiti (1915–1934)

Após um golpe de Estado, os EUA invadiram o Haiti em 1915 sob o pretexto de evitar o "colapso financeiro". O National City Bank assumiu o controlo do Tesouro haitiano. Agricultores locais foram obrigados a abandonar culturas de subsistência para plantar matérias-primas destinadas à indústria têxtil americana, como o algodão. A economia haitiana foi subordinada aos interesses das empresas norte-americanas — uma forma de privatização imposta pela força.

c) Conluio entre corporações e governo

Exemplo: United Fruit Company nas Honduras (década de 1920)

A United Fruit Company (UFCO) atuou em estreita colaboração com bancos e diplomatas norte-americanos para derrubar presidentes hondurenhos que resistiam aos termos impostos pela dívida externa. O Tratado de Washington (1923) institucionalizou esse controlo, transformando as Honduras num protetorado financeiro de facto dos Estados Unidos. A soberania nacional foi sacrificada em nome da "estabilidade económica" e dos lucros das empresas americanas.

5.2 Ecos contemporâneos da Diplomacia do Dólar

A lógica da Diplomacia do Dólar não desapareceu: apenas mudou de forma. Desde a década de 1980, programas de ajustamento estrutural impostos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) replicaram os mesmos mecanismos de subordinação.

Países como a Argentina e a Jamaica foram obrigados a privatizar serviços essenciais — como o abastecimento de água, a eletricidade e os cuidados de saúde — em troca de empréstimos. As consequências sociais foram devastadoras: aumento da pobreza, degradação dos serviços públicos e dependência crónica de capitais externos.

Hoje, os EUA acusam a China de praticar “diplomacia da armadilha da dívida” através da sua Iniciativa Faixa e Rota. No entanto, esse modelo de coerção económica foi iniciado e refinado por Washington ao longo do século XX.

5.3. Conclusão: a dívida como arma de dominação

A Diplomacia do Dólar demonstrou que a coerção económica pode alcançar aquilo que os exércitos, por si só, nem sempre conseguem: o controlo estrutural de países inteiros. O seu legado continua a marcar a geopolítica global através de:

Empréstimos predatórios por instituições financeiras internacionais;

Sanções económicas que paralisam economias soberanas;

Grilagem de terras e recursos naturais por multinacionais no Sul Global.

Mais do que uma tática do passado, a Diplomacia do Dólar é um sistema em constante atualização — a colonização pela dívida continua viva.

6. Neocolonialismo pós-Segunda Guerra Mundial (1945-1991)

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo assistiu a uma nova forma de dominação global liderada pelos Estados Unidos: o neocolonialismo. Ao contrário do colonialismo clássico, baseado na ocupação territorial direta, o neocolonialismo operava por meio de mecanismos económicos, financeiros e geopolíticos, garantindo o controlo sobre países formalmente independentes.

Um marco decisivo foi a criação do Sistema de Bretton Woods, em 1944, que estabeleceu o dólar norte-americano como moeda de reserva mundial, conferindo aos Estados Unidos uma posição de hegemonia financeira sem precedentes. Esta arquitetura permitiu aos EUA controlar fluxos internacionais de capital, ditar políticas monetárias globais e submeter economias periféricas à sua influência.

Paralelamente, os serviços de inteligência norte-americanos, em particular a CIA, tornaram-se instrumentos centrais dessa estratégia. Sob o pretexto da luta contra o comunismo, os EUA patrocinaram golpes de Estado em diversos países que tentavam seguir caminhos autónomos ou socialistas. Entre os exemplos mais notórios estão o Irão, em 1953, onde foi deposto o primeiro-ministro Mohammad Mossadegh após nacionalizar o petróleo, e o Chile, em 1973, onde o presidente Salvador Allende foi derrubado, abrindo caminho à ditadura de Augusto Pinochet — altamente favorável aos interesses económicos norte-americanos.

Na década de 1980, o neocolonialismo assumiu uma nova dimensão com o avanço do outsourcing e da deslocalização industrial. As grandes corporações americanas transferiram as suas fábricas para países com mão-de-obra barata e fraca proteção laboral, como o México e o Sudeste Asiático. Milhões de trabalhadores foram submetidos a condições precárias em oficinas clandestinas (sweatshops), com longas jornadas, baixos salários e ausência de direitos sindicais. Este modelo maximizava os lucros empresariais, ao mesmo tempo que perpetuava relações assimétricas de dependência económica.

7. Exploração neoliberal moderna (década de 1990 - presente)

No final da Guerra Fria, os Estados Unidos emergiram como a única superpotência global e passaram a consolidar a sua hegemonia através de um novo paradigma imperial: o neoliberalismo armado. Ao contrário dos impérios clássicos, o poder norte-americano passou a ser exercido por meio de acordos comerciais assimétricos, guerras por recursos e políticas de ajuste estrutural impostas por instituições internacionais. A exploração neoliberal moderna não é apenas económica — é também militar, jurídica e ideológica.

a) NAFTA (1994): Destruição da agricultura mexicana e criação de um exército industrial de reserva

A assinatura do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), entre os EUA, o Canadá e o México, foi apresentada como um motor de prosperidade. Na prática, destruiu a agricultura mexicana tradicional ao permitir a entrada massiva de produtos agrícolas subsidiados dos EUA, levando milhões de pequenos agricultores à ruína.

Sem alternativa, muitos migraram para as zonas industriais do norte do México, onde se instalaram as maquiladoras — fábricas de montagem para empresas americanas que exploram mão-de-obra barata, sem direitos laborais nem ambientais. O NAFTA criou, assim, um modelo de dependência em que o México perdeu soberania económica em troca de emprego precário e exploração industrial.

b) Guerra do Iraque (2003): Neoliberalismo armado disfarçado de libertação

A invasão do Iraque, liderada pelos Estados Unidos em 2003, foi justificada sob falsos pretextos — especialmente a existência de armas de destruição maciça e a necessidade de levar a democracia ao Médio Oriente. Contudo, os seus verdadeiros motores foram económicos e corporativos, numa operação de pilhagem organizada do Estado iraquiano.

1. O fator petróleo: “Sem sangue por petróleo?” Sim, e muito.

Antes mesmo dos ataques de 11 de setembro, o Cheney Energy Task Force (2001) — com representantes da Exxon, Chevron e Halliburton — já discutia o futuro dos campos petrolíferos iraquianos. Documentos vazados da Reserva Federal revelam que os EUA estavam a mapear a infraestrutura energética do Iraque antes da invasão.

Após a ocupação, foi implementada a Lei Iraquiana do Petróleo (2007), redigida com ajuda de consultores americanos, que atribuía mais de 70% dos lucros às petrolíferas ocidentais (Exxon, BP, Shell). Enquanto a produção aumentava, 80% das receitas iam para empresas estrangeiras. A Halliburton, empresa com ligações diretas ao vice-presidente Dick Cheney, obteve 39,5 mil milhões de dólares em contratos sem concurso público.

2. O lucro de guerra: A corrida ao ouro corporativa

Empresas como a Halliburton e a sua subsidiária KBR lucraram com contratos inflacionados: cobraram 45 dólares por um pacote com seis Coca-Colas e 100 dólares por um saco de roupa suja. Auditorias do Pentágono revelaram o desaparecimento de 8 mil milhões de dólares em fundos de reconstrução.

As empresas militares privadas (PMCs) como a Blackwater (hoje Academi) atuaram com impunidade. Em 2007, cometeram massacres de civis em locais como Nisour Square. No total, as PMCs faturaram 138 mil milhões de dólares no Iraque — mais do que o PIB do país à época.

3. Doutrina do Choque: neoliberalismo à força

A ocupação norte-americana do Iraque entre 2003 e 2011 constitui um dos exemplos mais extremos daquilo que Naomi Klein designou por “Doutrina do Choque”: a imposição de reformas neoliberais radicais em contextos de colapso social, trauma ou guerra, quando as populações se encontram demasiado desorganizadas ou fragilizadas para oferecer resistência significativa. No caso iraquiano, essa estratégia foi executada sob a liderança de Paul Bremer, administrador da Autoridade Provisória da Coalizão (CPA), que governou o país entre 2003 e 2004. Durante esse período, o Iraque foi alvo de uma reconfiguração económica profunda, orientada para a abertura total ao capital estrangeiro e o desmantelamento das estruturas estatais herdadas do regime baathista.

As ordens de Bremer: Um manual do capitalismo de desastre

1. Ordem 39 — privatização total

A Ordem 39 permitiu a aquisição de 100% de empresas iraquianas por investidores estrangeiros (com exceção do setor petrolífero), além de autorizar a repatriação integral dos lucros sem qualquer exigência de reinvestimento local. O impacto foi imediato e devastador:

Empresas públicas estratégicas — como as de eletricidade, água e telecomunicações — foram vendidas a preços simbólicos a conglomerados como a General Electric e a Bechtel.

A indústria local colapsou perante a concorrência de multinacionais, promovendo um processo acelerado de desindustrialização.

Estima-se que mais de 500 mil trabalhadores do setor público perderam os seus empregos, agravando o desemprego estrutural no país.

2. Ordem 17 — imunidade para contratantes estrangeiros

Esta ordem conferiu imunidade legal a todos os contratantes estrangeiros — incluindo mercenários — perante a justiça iraquiana, mesmo nos casos mais graves de violação dos direitos humanos.

Em 2007, o massacre da Praça Nisour, perpetrado por agentes da empresa Blackwater, resultou na morte de 17 civis desarmados e ferimentos em outros 20. Nenhum responsável foi julgado em território iraquiano.

O ambiente de impunidade incentivou práticas de corrupção generalizada, com empresas como a Halliburton a serem acusadas de superfaturamento massivo de serviços logísticos e de reconstrução.

3. Ordem 12 — o colapso fiscal

A redução drástica do imposto sobre sociedades para 15% e a eliminação total das tarifas de importação aniquilaram a base fiscal do Estado iraquiano.

Os serviços públicos entraram em colapso: hospitais, escolas e infraestruturas básicas deixaram de receber financiamento adequado.

Agricultores locais, sem apoios estatais, não conseguiram competir com os produtos agrícolas fortemente subsidiados dos Estados Unidos, tornando o país dependente de importações alimentares.

O Resultado: uma economia em ruínas

As consequências sociais e económicas deste programa de “terapia de choque” foram desastrosas:

O desemprego atingiu 60% da população ativa em 2004.

A pobreza duplicou em relação ao período pré-guerra: cerca de 40% dos iraquianos passaram a viver abaixo da linha da pobreza (face a 19% anteriormente).

A infraestrutura de saúde pública foi severamente degradada, originando surtos de doenças evitáveis, como a cólera, em função da falta de acesso a água potável e saneamento.

4. Dívida e reconstrução: o novo colonialismo

O novo governo iraquiano herdou 125 mil milhões de dólares em dívidas do regime de Saddam Hussein — a maioria para bancos norte-americanos e britânicos. O FMI impôs ajustes estruturais que exigiam a privatização da saúde, da educação e da indústria petrolífera como condição para novos empréstimos.

Dos 60 mil milhões de dólares alocados à reconstrução, grande parte foi desviada para empresas como a Bechtel e a Fluor. Apenas 33% da infraestrutura prometida foi concluída. O sistema de esgotos de Bagdade continua a colapsar até hoje.

5. O legado: um manual para guerras futuras

O modelo iraquiano foi replicado noutros cenários:

Líbia (2011): Privatização do petróleo após a queda de Kadhafi.

Síria (2014–presente): Ocupação dos campos petrolíferos pelos EUA.

Venezuela (2019): Sanções económicas para forçar a mudança de regime.

A Guerra do Iraque não foi uma anomalia — foi a institucionalização da guerra como modelo de negócio. Uma fusão entre neoliberalismo e militarismo, com consequências devastadoras para as populações locais.

c) Armadilha da dívida: China versus EUA

Embora a China seja frequentemente acusada de aplicar uma “diplomacia da armadilha da dívida” através da Iniciativa Faixa e Rota, convém lembrar que os EUA foram os verdadeiros pioneiros deste modelo. Os programas de ajustamento estrutural do FMI e do Banco Mundial, nos anos 1980 e 1990, forçaram dezenas de países do Sul Global a privatizar setores essenciais como água, eletricidade e saúde em troca de empréstimos — perpetuando a dependência e o subdesenvolvimento.

Conclusão: O capitalismo como ferramenta de dominação americana

Os Estados Unidos não se limitaram a participar no capitalismo global — transformaram-no numa arma. Um sistema que combina:

Intervenção militar (guerras de mudança de regime)

Coerção económica (sanções, dependência da dívida)

Exploração corporativa (fábricas clandestinas, extração de recursos, agora na moda as “terras raras”)

Este modelo enriqueceu as elites norte-americanas e empobreceu milhares de milhões no Sul Global. Hoje, começam a surgir sinais de resistência: movimentos de desdolarização (como os BRICS), alternativas ao FMI, e novas formas de solidariedade Sul-Sul desafiam a ordem estabelecida. No entanto, o poder corporativo-militar americano continua profundamente entranhado nas estruturas da economia global.

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