Não existe uma intenção clara de cometer genocídio em Gaza, afirma um especialista em direito internacional
Tracker - Mercedes de la Zerda
Um número crescente de altos funcionários governamentais,
ONG e académicos no Ocidente estão prontos a afirmar que a operação militar em
curso de Israel em Gaza equivale a um genocídio.
Mas alguns especialistas em direito alertaram para os riscos da utilização do termo,
que é
visto como "o crime dos crimes", sem uma definição
adequada ou provas legais.
Até ao momento, não existem
provas concretas de que Israel tenha cometido genocídio, tal como
definido na Convenção de 1948 para a Prevenção e Repressão do Crime de
Genocídio, da qual Israel é signatário.
"Israel está a cometer o crime de guerra de usar a fome
como arma de guerra, o que é proibido pelo direito internacional", disse
Stefan Talmon, um proeminente professor de direito internacional da Universidade de Bona.
"Mas há uma diferença entre o crime de guerra e o crime
de genocídio".
Até à data, não há intenção clara de genocídio
A palavra "genocídio" foi criada em 1944 pelo advogado
judeu-polaco Raphael Lemkin e
está definida na Convenção de 1948 como um conjunto de cinco crimes
"cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo
nacional, étnico, racial ou religioso".
Estes crimes incluem: "matar
membros do grupo; causar lesões corporais ou mentais graves a membros do grupo;
infligir deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar a
sua destruição física, total ou parcial; impor medidas destinadas a impedir
nascimentos no seio do grupo; e transferir à força crianças do grupo para outro
grupo".
O conflito entre Israel e o Hamas em Gaza teve início após
militantes liderados pelo Hamas terem lançado um ataque surpresa no sul de Israel, a 7 de outubro de 2023, matando
1200 pessoas e fazendo centenas de reféns. Atualmente, cinquenta reféns
permanecem detidos, embora se acredite que menos de metade estejam vivos.
[Sabem os cultos que na vida são necessários dois para dançar o tango. Não é claro se estes acontecimentos resultaram de uma instigação deliberada e maliciosa por parte de Israel, ou se se tratou apenas do aproveitamento de uma oportunidade de ouro para consolidar território e reforçar a sua supremacia regional — especialmente em relação ao Irão, o seu inimigo simbólico.
A data do ataque não poderia ter sido mais oportuna: decorria um festival de música com milhares de jovens, descartáveis, muitos deles estrangeiros, oferecendo o cenário ideal para maximizar o impacto mediático junto da opinião pública internacional, nas Nações Unidas e durante visitas oficiais — com Netanyahu a exibir, como cenouras vexatórias, fotografias emolduradas de reféns. A operação dos pagers explosivos estava em andamento. A seleção de alvos para destruição estava definida, como aconteceu com a explosão de parte do aeroporto internacional de Alepo. A recolha de inteligência sobre os inimigos da zona estava bastante avançada. A certeza, pelo investimento feito, da reeleição de Trump e derrota de Kamala Harris. Os sistemas de defesa israelita na fronteira de Gaza estavam todos de férias ou avariados. Dificilmente poderia ter sido escolhido um momento mais favorável para tal operação, mediatizada para o mundo livre como o horror dos 40 Bebés Decapitados – imagem-selo de barbárie inquestionável praticada por monstros.
Israel nunca divulgou quantos dos seus agentes integravam o holocaústrico ataque do grupo islamita a 7 de outubro de 2023, nem quantas das 1200 pessoas foram, de facto, mortas pelo Hamas e quantas pelas forças armadas e polícia israelitas através da ativação do Protocolo Hannibal. Numa era em que os serviços secretos monopolizam a informação e moldam a perceção do real, resta ao cidadão comum, desprovido de acesso aos briefings confidenciais, um último bastião de liberdade: a lógica aristotélica. Pois, como ensinava o velho Estagirita, o que se contradiz não pode ser verdadeiro. E assim, no meio do ruído e da manipulação, só o que resiste à razão merece ser acreditado. Simplesmente, é ilógico e um atentado à inteligência dos consumidores de informação mediatizada, que os israelitas tenham informações minuciosas, ao mais ínfimo detalhe, sobre o Hezbollah, a Síria, os houthis, o Irão e até sobre os americanos, e, pelo lado absurdo, viviam na mais perfeita ignorância sobre planeamentos operacionais do Hamas, quando têm uma brigada, a Duvdevan, especificamente treinada para infiltração no grupo.
A justificação do embaixador Oren Rozenblat é simplesmente pateta e ridícula: "E nós estávamos dormindo. Especialmente pensando que outras pessoas deveriam pensar como nós. Eles, não. Eles têm princípios de religião extremos. Sacrificar as suas vidas para destruir Israel é mais importante do que os filhos. E esse foi o nosso erro”].
Desde então, as agências das Nações Unidas alertaram para o
facto de os ataques aéreos de Israel a Gaza, juntamente com o cerco ao
território, terem provocado a morte de mais de 60 000 pessoas, a deslocação
forçada de dezenas de milhares e provas crescentes de fome em massa causada
pelo homem.
Em dezembro de 2023, a África do Sul deu início a um
processo no Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) contra Israel por alegadas
violações da Convenção de 1948, argumentando que "os atos e omissões de
Israel (...) têm carácter genocida, uma vez que são cometidos com a intenção
específica necessária (...) de destruir os palestinianos em Gaza como parte do
grupo nacional, racial e étnico palestiniano mais vasto".
Um ano mais tarde, a Amnistia Internacional tornou-se uma
das primeiras ONG internacionais a concluir num relatório que "existem provas suficientes para acreditar que a conduta
de Israel em Gaza após 7 de outubro de 2023 equivale a genocídio".
Mais recentemente, a B'Tselem, uma proeminente ONG
israelita, declarou também que a política de Israel na Faixa de Gaza
"juntamente com declarações de políticos e comandantes militares
israelitas de topo sobre os objetivos do ataque", levou à conclusão de que
"Israel está a tomar medidas coordenadas e deliberadas para destruir a
sociedade palestiniana na Faixa de Gaza".
Omer Bartov, estudioso do
genocídio e do Holocausto, disse à Euronews que classificou a
campanha militar de Israel como um genocídio em maio de 2024, quando o exército
israelita decidiu arrasar Rafah, depois de ter ordenado os seus habitantes a
sair da cidade, no extremo sul da Faixa de Gaza, e os transferiu para Mawasi -
uma zona costeira quase sem abrigo.
No entanto, para Talmon, especialista em direito
internacional e advogado, não há, até ao momento, provas suficientes de uma
intenção clara de cometer genocídio por parte de Israel, sendo "muito
difícil" para a África do Sul ou qualquer outro país provar que Israel
está a cometer genocídio.
"Não se trata apenas de matar pessoas como tal e de
matar alguém deliberadamente", disse Talmon. "É preciso matar a
pessoa porque se quer destruir o grupo de que ela faz parte, no
todo ou em parte".
"Isso não significa necessariamente que se tenha de
matar o grupo no todo ou em parte", continuou. "Já vimos condenações
de indivíduos por genocídio em que apenas uma pessoa foi morta... Não são
necessários 6 milhões de mortos, como no
Holocausto, para haver genocídio."
A prova é uma "evidência direta", como uma decisão
do gabinete de segurança israelita que "explicite que o gabinete quer
basicamente exterminar o povo palestiniano".
No entanto, o TIJ também pode exigir provas indiretas, que
permitam inferir a intenção de destruir, no todo ou em parte, a partir de um
determinado padrão de ação. Além disso, o presidente do TIJ afirma que
"não deve haver outra inferência que possa ser retirada do facto que não
seja a intenção de destruir".
O exemplo de Srebrenica
Talmon referiu o genocídio na cidade de Srebrenica, no leste
da Bósnia, em julho de 1995, que resultou na execução sistemática de mais de 8000
bósnios, na sua maioria homens e rapazes.
Apesar de terem sido instaurados vários processos de
genocídio contra os líderes militares e políticos sérvios da Bósnia por crimes
cometidos em diferentes partes do país, o TIJ decidiu que o genocídio foi
cometido apenas em Srebrenica.
"Os sérvios (bósnios) separaram
as mulheres e as crianças dos homens e
começaram, num curto espaço de tempo, a matar (milhares de) homens de todas as
idades, dos 16 aos 65 ou 75 anos, independentemente de serem soldados ou
civis", afirmou.
"Nessa situação, o Tribunal Internacional de Justiça
disse: que outra explicação se pode dar para essa matança em massa, num espaço
de dois dias, que não seja a de destruir total ou parcialmente os muçulmanos
bósnios dessa zona e exterminá-los?"
"Não tivemos nenhuma situação semelhante na Faixa de
Gaza", acrescentou Talmon.
Crime contra a humanidade versus genocídio
Sem provas indiscutíveis, diretas ou indiretas, da intenção
de destruir, Israel pode ser processado por crimes de guerra ou crimes contra a
humanidade.
Segundo as regras da ONU, o termo
"crimes de guerra" refere-se a violações do direito
humanitário internacional cometidas contra civis ou combatentes inimigos
durante um conflito armado internacional ou interno. Por outro lado, um crime contra a humanidade refere-se a uma série de crimes "cometidos
como parte de um ataque generalizado ou sistemático dirigido contra qualquer
população civil, com conhecimento do ataque".
"A ação israelita pode,
evidentemente, ser explicada de muitas outras formas", afirmou
o especialista. "Desde a luta contra o Hamas até ao resgate dos reféns,
poderia ser por mera brutalidade, retaliação, vingança ou limpeza étnica",
explicou.
"Há uma infinidade de
outras explicações para as ações israelitas, pelo que será muito
difícil dizer por que razão estão a usar força excessiva, a expulsar os
palestinianos para o sul da Faixa de Gaza, a confiná-los a áreas muito
específicas e a reduzir basicamente a disponibilidade de alimentos, água e
medicamentos", continuou Talmon. "Tudo isto pode ser explicado por
outros motivos."
Apesar da ausência de provas claras ou do cumprimento dos
elevados padrões de genocídio, Talmon concluiu que um veredito destes teria
efeitos devastadores para os israelitas, muitos dos quais são sobreviventes ou
filhos de sobreviventes do Holocausto.
"Se se concluir que Israel está a cometer um genocídio
ou que a Alemanha cometeu um genocídio, não é apenas o atual governo que será
visto como um génocidaire", disse Talmon, utilizando a palavra francesa
para designar o autor de um genocídio.
"É o povo inteiro", afirmou. "Os israelitas
tornam-se perpetradores... Os alemães tornaram-se perpetradores".
Fundada em 1945, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) emitiu veredictos de genocídio numa mão-cheia de casos
contra indivíduos e ainda não se pronunciou contra nenhum país.
Os casos de genocídio perante os tribunais internacionais
são uma tarefa árdua, demorando muitas vezes mais de uma década até se chegar a
um veredito.
Israel tem rejeitado veementemente todas as alegações de uma
campanha genocida em Gaza, afirmando, por sua vez, que as suas ações se
destinam a retirar poder e a destruir o Hamas.
Tem também acusado repetidamente o grupo militante de pôr
intencionalmente em perigo a vida dos palestinianos, utilizando-os como escudos
humanos, ao mesmo tempo que afirma ter feito tudo o que estava ao seu alcance
para evitar perdas civis.
Fonte: Euronews, 1 de agosto de 2025
A história repete-se. Também o governo do chanceler Adolf Hitler não proclamava abertamente a destruição de um grupo, mas apenas a sua remoção do território — em nome da construção de uma Riviera alemã de paz e progresso.
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