Israel e a Judeia: O Povo que Nunca Partiu

Perry Mason (1957-1966) – H.M. Wynant, Melora Conway

Nos últimos anos, assistimos ao crescimento de uma narrativa militante que classifica Israel como um Estado “colonial de ocupação” e as suas ações militares como expressão de um “genocídio” sistemático contra o povo palestiniano. Tais acusações, além de moralmente inflamadas, assentam numa profunda ignorância da história e numa inversão perversa de valores

«By the rivers of Babylon, there we sat down, yea, we wept, when we remembered Zion…». A melodia disco-pop dos Boney M., que correu mundo nos anos 70, tem origem surpreendente: é uma versão musical do Salmo 137, um dos textos mais pungentes da literatura bíblica. Mas, por trás do ritmo dançante, ecoa o lamento de um povo exilado – os Judeus cativos na Babilónia, chorando a sua terra perdida. «Se me esquecer de ti, ó Jerusalém, que se paralise a minha mão direita». A canção, talvez sem o saber, transformou esse grito ancestral num hino moderno de dor e esperança. Recorda-nos que, mesmo longe da sua terra, Israel nunca se esqueceu de Sião. E que o exílio, por mais prolongado, nunca foi sinónimo de rutura.


A canção foi escrita e gravada originalmente por Brent Dowe e Trevor McNaughton, da banda de roots reggae jamaicana The Melodians, em 1970, e tornou-se um hino do movimento rastafári. A sua versão apareceu na banda sonora do filme "The Harder They Come", de 1972

Ora, há palavras que albergam séculos dentro de si – e “Judeia” é uma delas. Muito antes de a geopolítica moderna moldar o vocabulário diplomático do Médio Oriente, já esse nome figurava nas Escrituras hebraicas, nos anais imperiais e nas tradições de um povo cuja ligação à terra que habitava era simultaneamente espiritual, histórica e territorial. Hoje, numa era marcada por slogans e revisionismos, importa regressar às fontes – não para reanimar nostalgias, mas para avivar a memória.

A narrativa que vê Israel como uma construção artificial do século XX, imposta ao mundo árabe pela vontade ocidental, não resiste a uma análise séria. Muito antes das Nações Unidas, dos impérios europeus ou das convenções internacionais, já existia um povo – os filhos de Israel – com uma terra – a terra de Canaã, depois chamada Israel e Judeia – com uma identidade que atravessou milénios, exílios e impérios. Eis, cinco fundamentos que sustentam a legitimidade histórica e teológica da presença judaica na sua terra.

1. O Enraizamento Bíblico: Abraão, Isaac e Jacob

A história começa com uma chamada e uma promessa. No livro do Génesis, Deus dirige-se a um homem da Mesopotâmia, Abraão e ordena-lhe: «Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que Eu te mostrarei» (Génesis 12:1). Essa terra é Canaã – e a promessa é clara: «À tua descendência darei esta terra» (12:7). Não se trata de um ideal simbólico, mas de um território delimitado, com cidades, montes, vales e fronteiras. Abraão estabelece-se em Siquém, depois em Hebrom, onde acaba por adquirir legalmente o campo de Macpela, para ali sepultar Sara — e onde mais tarde serão sepultados Isaac e Jacob. Isaac, o filho da promessa, recebe do próprio Deus a confirmação da aliança: «Permanecerás nesta terra, e Eu estarei contigo e te abençoarei; porque a ti e à tua descendência darei todas estas terras» (Génesis 26:3). Jacob, por sua vez, sonha com uma escada em Betel e ouve: «A terra em que estás deitado, a darei a ti e à tua descendência» (28:13). Quando mais tarde regressa do exílio em Harã, Jacob compra um terreno nos arredores de Siquém (33:19), reafirmando a presença dos patriarcas naquela região montanhosa que, milénios depois, o mundo viria a designar como “Cisjordânia”. Estes relatos, nada têm a ver com devoção religiosa. São, antes de mais, testemunhos de uma geografia de presença: os patriarcas não foram apenas viajantes espirituais, mas residentes, peregrinos com casa, vivendo em cidades concretas.

2. De Tribos a Reino

O Êxodo do Egipto e a entrada na terra de Canaã sob a liderança de Josué representam o início da organização tribal de Israel. As doze tribos instalam-se em territórios claramente definidos: Judá na região sul (Judeia), Efraim e Manassés no centro (Samaria), Benjamim nos arredores de Jerusalém. Esta divisão territorial é cuidadosamente descrita no relato Bíblico em Josué 13–21, com referências precisas a cidades, rios e fronteiras. A transição de uma confederação tribal para uma monarquia unificada dá-se com Saul, mas é com David que Jerusalém se torna a capital política e religiosa. A conquista da cidade Jebusita e a transferência da arca da aliança marcam o início do papel central de Jerusalém na identidade israelita. David compra o Monte Moriá (2 Samuel 24:24), e o seu filho Salomão ali constrói o Primeiro Templo, símbolo da aliança e do culto centralizado. Durante os séculos do Reino Unido e depois dividido (Israel a norte, Judá a sul), a Judeia e Samaria mantêm-se como centros políticos, religiosos e culturais do povo judeu. Cidades como Betel, Siló e Samaria são sedes de culto; Jerusalém permanece como coração do Reino de Judá. A Bíblia descreve esta presença não como episódica, mas como contínua e estruturada. A terra era mais do que espaço físico: era o lugar da aliança com Jahvé, teatro da história sagrada e pátria concreta.

3. O Exílio e o Regresso

Com a conquista Assíria do Reino do Norte (722 a.C.) e depois com o exílio babilónico do Reino de Judá (586 a.C.), o povo de Israel enfrentou a dispersão. Contudo, mesmo no exílio, houve sempre um “remanescente” que permaneceu na terra, e, sobretudo, a esperança do regresso nunca foi abandonada. Como expressa o profeta Jeremias, voz desse período turbulento: “Assim diz o Senhor: edificai casas e habitai nelas; plantai jardins e comei o seu fruto. Procurai a paz da cidade para onde vos exilei e orai por ela ao Senhor, porque dela depende a vossa paz” (Jeremias 29:5-7). Essa esperança ativa de reconstrução marca o espírito do povo Judeu durante a diáspora. O regresso concretizou-se com o decreto de Ciro da Pérsia (538 a.C.), que permitiu a reconstrução do Templo. Esdras e Neemias lideraram o repovoamento da Judeia e a reconstituição da comunidade, centrada em Jerusalém. Durante os séculos seguintes, sob domínio persa, helénico e romano, a Judeia continuou a ser identificada como terra dos Judeus. Os Macabeus, no século II a.C., restabeleceram a soberania judaica por cerca de cem anos, até à chegada dos romanos. Herodes, governador ao serviço de Roma, ampliou o Segundo Templo, e Jerusalém atingiu um esplendor religioso e arquitetónico sem precedentes. Este período está bem documentado por fontes judaicas, greco-romanas e arqueológicas. A Judeia não é apenas um espaço de passado bíblico: é também uma realidade histórica, viva e disputada, antes mesmo da era cristã.

4. Confirmação Arqueológica e Histórica

A arqueologia tem vindo a desempenhar um papel crucial na confirmação do vínculo histórico entre o povo Judeu e a terra de Israel. Escavações em Siló, local do antigo Tabernáculo, revelaram estruturas datadas do século XI a.C., consistentes com o culto pré-templo descrito em Juízes e 1 Samuel. Em Jerusalém, o chamado “Ophel” — entre a Cidade de David e o Monte do Templo — tem revelado selos e inscrições em hebraico antigo com nomes mencionados nas Escrituras. Flávio Josefo, historiador judeu do século I, refere-se repetidamente à Judeia como terra dos Judeus, descrevendo fronteiras, cidades, festas e revoltas. No seu livro Antiguidades Judaicas, dá-nos uma cronologia dos reis, dos sumos-sacerdotes e dos acontecimentos que coincidem amplamente com os relatos bíblicos. A designação “Palestina”, introduzida oficialmente pelos romanos após a revolta de Bar Kochba (135 d.C.), visava precisamente apagar o nome “Judeia” do mapa. Foi uma medida punitiva e ideológica — não etnográfica. Ainda assim, comunidades Judaicas persistiram em várias cidades, como Hebrom, Tiberíades, Safed e Jerusalém.

5. O Êxodo e o Retorno Moderno

A diáspora Judaica, que se estendeu por quase dois milénios, jamais significou esquecimento. Em cada geração, os judeus oravam voltados para Jerusalém; em cada celebração da Páscoa, repetiram: “No próximo ano, em Jerusalém!”. Essa consciência de exílio voluntário, mas temporário, moldou o espírito judaico. A terra não foi esquecida e houve comunidades judaicas na Palestina ao longo dos séculos. O movimento sionista, surgido no século XIX, não inventou a ligação entre os Judeus e a terra de Israel – limitou-se a reivindicá-la com novo vigor. Theodor Herzl, no seu Estado Judeu (1896), apelava à restauração de um lar nacional judeu, num contexto de crescente antissemitismo europeu. A Declaração Balfour (1917) e o Mandato Britânico reconheceram essa aspiração como legítima. Em 1947, a ONU votou favoravelmente a partilha da Palestina, e quando o Estado de Israel foi proclamado em 1948, não temos um ato arbitrário, mas o coroar duma história milenar de êxodo humilhante e regresso triunfante.

A história do povo judeu na Judeia não é uma construção recente nem uma ficção religiosa. É uma realidade documentada, vivida, transmitida, escavada e escrita. A terra que viu Abraão peregrinar, David reinar e os profetas clamar, nunca deixou de ser o eixo da identidade judaica. E Israel é a única casa para 9 milhões de Judeus. Quando o mundo moderno se espanta com a persistência de Israel, talvez devesse lembrar-se de que poucos povos mantiveram tão tenazmente o fio da memória, da fé e da geografia. Não é o mapa que dá legitimidade a um povo. É o povo que, com a sua fidelidade à terra, à história e à promessa, dá sentido ao mapa.

Contra o Revisionismo Teológico/Histórico

Nos últimos anos, assistimos ao crescimento de uma narrativa militante que classifica Israel como um Estado “colonial de ocupação” e as suas ações militares como expressão de um “genocídio” sistemático contra o povo palestiniano. Tais acusações, além de moralmente inflamadas, assentam numa profunda ignorância da história e numa inversão perversa de valores. A ideia de que Israel é um projeto de “settler colonialism” – como se os judeus fossem uma potência externa a implantar-se num território alheio – ignora os milénios de presença contínua do povo judeu na terra. Não há paralelo histórico entre o colonialismo europeu, movido por interesses comerciais em terras longínquas, e o regresso de um povo ao seu berço ancestral, para aí reconstruir a sua vida nacional. Os Judeus que voltaram a Israel no século XIX não eram colonizadores, mas exilados. E regressaram não pela força das armas, mas pela força da memória, da língua e da sua cultura.

Quanto à acusação de “genocídio” – palavra usada com uma leviandade que desonra as vítimas reais do genocídio do século XX –, ela resiste ainda menos a uma análise séria. O Hamas, organização terrorista que sequestra o povo de Gaza desde 2007, tem como objetivo declarado a destruição de Israel e a eliminação do povo Judeu da região. O ataque de 7 de outubro de 2023, que vitimou brutalmente civis israelitas, incluindo mulheres, crianças e idosos, não foi um ato de resistência, mas um “pogrom” cuidadosamente planeado. A resposta militar de Israel visa neutralizar essa ameaça – não exterminar um povo. As Forças de Defesa de Israel dão avisos prévios, distribuem panfletos, abrem corredores humanitários. O Hamas, por seu lado, esconde os seus arsenais em escolas, hospitais e mesquitas, usando a sua própria população como escudo. Usar civis como arma de propaganda não é apenas imoral; é um crime de guerra. E acusar Israel de genocídio por se defender dessas táticas é culpar o ferido por ter sangrado. O verdadeiro escândalo contemporâneo não é a existência de Israel, mas a facilidade com que o antissemitismo se traveste de antissionismo e circula nos meios académicos, mediáticos e políticos do Ocidente. Não há povo que tenha aguardado tanto tempo, com tanta paciência e tanto sofrimento, o direito de voltar à sua terra. E não há Estado moderno que tenha enfrentado, desde o seu nascimento, tamanha hostilidade internacional apenas por querer existir.

Israel não é perfeito – nenhum Estado o é. Mas a sua existência não é um erro a corrigir. É um facto histórico, uma justiça tardia, e uma realidade política que deve ser reconhecida com lucidez e respeito. Quem ignora ou distorce as suas raízes milenares – bíblicas, históricas e culturais – não está apenas a errar na análise. Está a perpetuar uma injustiça.

Filipe Nunes

Fonte: Sol, 13 de agosto de 2025

Cozinhar salgalhada de história, religião, arqueologia, notícias de TV e política para construir um argumento de legitimidade histórica ininterrupta revela um modo de vida muito americano em que os comentadores são pagos pelos governos nacionais ou estrangeiros para terem “opinião”.

1. História: presença contínua vs. continuidade demográfica

Todas as coisas boas aconteceram em ancestrais tempos. Deus oferece terra, mas hoje não vemos a Remax a dar casas, lança as bases de todo este raciocínio, que sustenta que os judeus mantiveram presença contínua na Judeia/Palestina ao longo dos séculos. No entanto, estudos históricos e arqueológicos indicam que, após a destruição do Segundo Templo (70 d.C.) e a revolta de Bar Kokhba (135 d.C.), a população judaica na região diminuiu drasticamente. Fontes romanas e bizantinas apontam para um predomínio de populações árabes, samaritanas e pagãs. A presença judaica persistiu em cidades como Jerusalém, Hebrom e Tiberíades, mas representava uma minoria relativa, muitas vezes submetida a restrições legais e tributos. Portanto, a ideia de um “povo que nunca partiu” é uma simplificação: a continuidade cultural existiu, mas a continuidade demográfica e política foi interrompida por séculos.

2. Religião: promessa bíblica vs. legitimidade política

Argumenta que as promessas bíblicas a Abraão, Isaac e Jacob conferem legitimidade histórica à presença judaica na terra. Um contra-argumento é que textos religiosos não podem, por si mesmos, estabelecer direitos de soberania em termos modernos. Outras religiões – como o Islão ou o Cristianismo – também reconhecem a ligação histórica a Jerusalém e à Palestina, mas isso não traduz automaticamente um direito exclusivo. Além disso, a narrativa religiosa é interpretativa e não uniforme: diferentes tradições judaicas e seculares discutem a extensão e a aplicação da promessa bíblica.

3. Arqueologia e fontes históricas

Menciona descobertas arqueológicas em Siló e Jerusalém e fontes como Flávio Josefo para sustentar a presença judaica contínua. No entanto, a arqueologia mostra que as camadas de ocupação incluem múltiplos grupos: cananeus, filisteus, romanos, árabes e cruzados. A interpretação de artefactos como “prova de soberania contínua” é contestável: presença cultural não equivale a controle político contínuo. A designação “Palestina” pelos romanos não visava apenas apagar a identidade judaica, mas refletia a reorganização administrativa do Império, prática comum em territórios conquistados.

4. Contexto moderno e narrativa sionista

Apresenta o sionismo como um “retorno legítimo” ao berço ancestral. É verdade que havia comunidades judaicas na Palestina, mas estas eram minoritárias, dispersas e muitas vezes isoladas. O aumento da imigração no século XIX e XX foi facilitado pelo imperialismo britânico e pelo contexto do colonialismo europeu, que ofereceu suporte político e legal. Portanto, embora a narrativa histórica e cultural seja relevante, o projeto sionista moderno não foi simplesmente um “regresso natural” à terra; envolveu deslocamento, compra de terras de habitantes árabes locais e, em muitos casos, a expulsão forçada de comunidades, a destruição de aldeias, massacres e a repressão sistemática de revoltas populares. Um dos episódios mais marcantes foi o massacre de Deir Yassin, a 9 de abril de 1948, quando milicianos das organizações Irgun e Lehi atacaram a aldeia, matando pelo menos 107 palestinianos, incluindo mulheres e crianças, apesar de esta ter previamente acordado um pacto de não-agressão com os sionistas. Poucos meses depois, em 29 de outubro de 1948, ocorreu o massacre de al-Dawayima, durante o qual soldados israelitas mataram entre 80 e 200 pessoas, através de execuções em massa e destruição da aldeia, levando à expulsão da sua população. Também em maio de 1948, após a rendição da aldeia de Tantura, forças da Brigada Alexandroni executaram dezenas a centenas de habitantes, enterrados em valas comuns, tendo os sobreviventes sido forçados ao exílio e a aldeia destruída. No mesmo ano, a 25 de julho, a aldeia de Ijzim, com cerca de três mil habitantes, foi arrasada, as casas demolidas e os seus habitantes expulsos, perdendo terras e propriedades. Estes episódios, entre muitos outros registados durante a guerra de 1947-1948 e conhecidos como parte da Nakba, demonstram que a construção do Estado de Israel não ocorreu de forma pacífica ou consensual em terrenos desocupados, mas sim à custa da população nativa, através de violência, expulsões e apropriação de território, estabelecendo desde o início um Estado marcado por injustiça, violência e apartheid.

O Hamas é apenas episódico, notícias de jornais para enganar tolos; o essencial é o grande quadro. Israel precisa de matar ciclicamente árabes para conter a pressão demográfica. Tolerar que dois milhões de pessoas, comprimidas numa faixa de 365 km², se reproduzam livremente seria um suicídio programado, pondo em perigo as gerações israelitas futuras. A política de extermínio e contenção revela, assim, uma racionalidade biopolítica orientada não apenas pelo conflito militar, mas pela mais geral salubridade da Lebensraum.

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