Denúncias de abuso tratadas como “assuntos privados entre pessoas adultas”. Boaventura diz-se “mais tranquilo”
Engrenages – Anca Radici, Magdalena Malina
“Toques
nas nádegas e genitais”, “relações sexuais com alunas”, “sob efeito de
substâncias”. Testemunhos a Comissão que investigou CES garantem que ante tais
denúncias membros da instituição “normalizaram”: “São assuntos privados entre
adultos”. Reação no CES ao relatório foi “tensa”, Boaventura frisa não ser
nomeado.
"O relatório tanto é visto como provando a existência
de assédio como não provando nada. A dada altura, uma colega perguntou: depois
disto, vocês [Comissão Independente] podem dizer ‘houve abuso sexual, houve
assédio sexual no CES, houve ou não?’”
A descrição é de quem assistiu à apresentação, que ocorreu à
porta fechada, na tarde desta quarta-feira, num auditório cheio, do relatório
da Comissão Independente de Esclarecimento de Situações de Assédio no Centro
de Estudos Sociais à “comunidade CES” (investigadores, professores na
instituição e outros funcionários, assim como representantes de alunos de
pós-doutoramento ligados ao Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra). A Comissão, prossegue quem conta - e que requer anonimato -, foi questionada,
“num debate duro”, e “sempre respondeu ‘Nós não somos um tribunal, não podemos
fazer uma afirmação dessas.’”
Em resultado, “a Comissão acabou por levar um pouco dos dois
lados: de pessoas que esperavam mais, e queriam que o relatório fosse quase uma
sentença - disseram que as conclusões indicavam um padrão de abuso, de assédio
-, e de outras, sobretudo das mais próximas dos acusados, ou denunciados, que
intervieram para questionar o trabalho, a metodologia e o facto de a Comissão
validar os testemunhos pela “coerência” e pela “consistência”, ou seja, por
haver relatos de situações muito semelhantes. Essas pessoas disseram que 'uma
ficção também tem coerência interna'.”
A sessão, na qual “houve palmas, e bem sonoras,
quando a Comissão terminou a apresentação”, acabou assim por evidenciar, frisa
quem assistiu, a clivagem existente no CES, bem expressa nas questões sobre
“reparações”. “É curioso”, comenta esta fonte, “porque a pergunta foi feita
tanto em relação a quem denunciou, as vítimas, e como poderia haver reparação
dos danos, como a quem foi denunciado”.
Essa divisão face ao relatório pode ser constatada no
contraste entre a carta aberta que no início da tarde foi divulgada pela
direção do CES, na qual se pede desculpa às vítimas e se promete agir em
relação aos denunciados - o que o diretor da instituição, Tiago Santos Pereira,
reforçou no final da sessão, fazendo referência ao Código do Trabalho, sendo
tal entendido como uma alusão a processos disciplinares -, e o comunicado
que mais tarde Boaventura de Sousa Santos enviou às redações.
Neste, intitulado “Relatório sem acusações diretas a
Boaventura de Sousa Santos”, o principal denunciado no escândalo de assédio
revelado em abril de 2023 (na sequência da publicação de um livro sobre assédio
sexual na academia - Sexual Misconduct in Academia - Informing an Ethics of
Care in the University /Má conduta sexual na Academia -Para uma Ética de
Cuidado na Universidade, publicado no final de março de 2023 - entretanto
retirado pela editora devido a ameaças de processo, e no qual um dos capítulos
descrevia, sem nomear a instituição, um padrão de abuso e assédio no CES, e o
designava como “Professor Estrela”, personagem mais importante de um
triunvirato de que faziam também parte “A Sentinela”, uma mulher, e
outro homem, “O Aprendiz”), diz-se “mais tranquilo hoje do que estava há
um ano”.
E, apesar de reconhecer que a direção do CES “optou por não
garantir o fim da suspeição”, afirma: “Nunca esperei uma absolvição das
suspeitas que sobre mim pairaram porque, efetivamente, nunca fui confrontado
com acusações concretas de abuso de poder ou de assédio - como, aliás, o
próprio documento agora atesta. (…) Acredito que as mais de 600 páginas de
prova que juntei ao processo tenham contribuído para que nada de objetivo
contra mim tenha sido concluído.”
“Boaventura tem tentado
descredibilizar as vítimas e distorcer os factos”
De facto, o relatório, que informa terem sido denunciadas 14
pessoas por 32 denunciantes, num total de 78 denúncias, não “nomeia nomes” e,
portanto, não o nomeia, não apresentando, assim, “nada de objetivo” contra
Boaventura - ou qualquer outra pessoa.
Porém, ressalvando terem sido “as versões apresentadas por várias pessoas
denunciantes e por várias pessoas denunciadas (...) em muitas situações
incompatíveis entre si, tornando-se, nessas situações, impraticável aferir
evidências das mesmas”, e que “a
documentação apresentada e as audições realizadas, tanto de pessoas
denunciantes como de pessoas denunciadas, não permitiram esclarecer
indubitavelmente a existência ou não da ocorrência de todas as situações
comunicadas à CI”, a Comissão conclui ainda assim que “a análise de toda a informação reunida, bem como
das versões entre as pessoas denunciantes e pessoas denunciadas que foram
compatíveis entre si, indiciam padrões de conduta de abuso de poder e assédio
por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do
CES.”
Não é, pois, nada evidente que Boaventura não seja uma das
pessoas denunciadas cujo nome está na lista que a Comissão entregou à direção
do CES.
E não é decerto verdade que nunca tenha sido confrontado com
acusações concretas de abuso de poder ou de assédio. Foi-o publicamente, em
abril de 2023, por uma ex-aluna de doutoramento do CES cujo caso é mencionado
no referido capítulo do livro (diz respeito a uma situação em que o “Professor
Estrela” teria, numa reunião de trabalho, tocado o joelho de uma estudante de doutoramento de
quem era orientador, “convidando-a a aprofundar o relacionamento” como “paga”
do seu apoio académico”) - acusação em relação à qual não apresentou até hoje
uma refutação pública.
A denunciante em causa é a hoje deputada estadual
brasileira do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) Isabella Gonçalves, que
testemunhou ante a comissão e, confrontada pelo DN com o comunicado de
Boaventura, se manifesta indignada.
“O relatório do CES não é um documento judicial - não é um
julgamento sobre o que é verdade e não é verdade, apresentando nomes de
culpados e de vítimas. O objetivo não era esse, mas observar se existem ou não
casos de assédio e abuso de poder no CES, e conclui que sim. Boaventura tem
tentado desde o início descredibilizar as vítimas e distorcer os
factos. Mas dessa vez está tentando fazer uma torção de entendimento que
extrapola qualquer razoabilidade. Porque o relatório é contundente em afirmar
que há padrões de assédio e abuso de poder no CES que precisam de ser
revistos”, afirma a deputada, que integra um coletivo de vítimas que
testemunharam perante a comissão e estão a preparar uma reação aos últimos
acontecimentos. “O relatório não veio do nada. As denunciantes são denunciantes
contra ele, Bruno Sena Martins e Maria Paula Meneses ["O
Aprendiz" e "A Sentinela", as outras personagens descritas no
capítulo]. Pode ter havido outros professores que tenham sido colateralmente
denunciados, por ação ou omissão, mas a centralidade da formação da Comissão se
deu em função de denúncias que vieram a público contra eles, inclusive relatos
contundentes apresentados, como foi o meu caso.”
E Isabella Gonçalves refere, como já o fizera ao DN em
setembro de 2023, a tentativa que o sociólogo terá feito de “construir uma
mediação” com ela através de uma advogada brasileira, “chegando a tentar fazer
um pedido de desculpas no Expresso [refere-se a um artigo publicado por
Boaventura no semanário em junho de 2023, no qual este pedia desculpa por
eventuais “comportamentos inapropriados mas recusava ter cometido “atos
graves”]…” Concluindo: “Ele está tentando construir uma torção impossível num
ponto como esse. De um homem que se diz anti-patriarcal, a gente
esperava uma atitude mínima de reconhecimento, de pedido de desculpas, que foi
o que o CES fez, e de reparação. Mas mais uma vez o Boaventura perde uma
oportunidade de inspirar outros homens, que eventualmente tenham errado na
sua trajetória, tenham cometido equívocos, e sentem que gostariam de os
reconhecer para tentar repará-los. Ele joga contra a própria ideia de justiça
restaurativa que sempre defendeu. Perde a oportunidade de contribuir para o
enfrentamento de situações de assédio. Porque tanto o relatório como a carta do
CES deixaram bastante claro que os padrões foram identificados.”
“Toda a gente sabia das
situações de assédio”?
Quando em abril de 2023 o DN ouviu membros do CES a
propósito das acusações contidas no capítulo do livro Sexual Misconduct in
Academia, foi referido que, a propósito de um conjunto de pichagens que
surgiram nas paredes do centro em 2017/2018, nas quais se lia por exemplo
“Fora, Boaventura. todas sabemos” (e que são referidas no título do capítulo do
livro referido - The walls spoke when no one else would/ As paredes falaram
quando ninguém se atrevia), o sociólogo foi questionado numa reunião académica
e respondeu algo como “Só
tenho conversas adultas com pessoas adultas”.
Este mesmo tipo de fórmula é reproduzido, no relatório da
comissão, como algo que terá sido usado no CES como resposta a denúncias:
“Algumas pessoas denunciantes referiram que informaram pessoas dentro do CES
sobre situações de assédio e abuso, acrescentando que estas normalizaram as
situações e referiram que se tratava de assuntos privados entre pessoas
adultas.”
Essas denúncias diriam sobretudo respeito a “assédio e abuso sexual (no sentido de contacto físico
sexualizado, indesejado e não autorizado) por parte de pessoas em
cargos de poder/chefia ou hierarquicamente superiores em relação a pessoas
diretamente dependentes das mesmas e/ou que se encontravam em grupos
vulneráveis, como sendo pessoas estrangeiras, mulheres (…)”.
Mas há mais nos relatos feitos à comissão que “toques no
joelho”. Há por exemplo, classificadas no relatório como relativas a “abuso
sexual”, denúncias de “toques indesejados e não consentidos em partes do corpo como coxas,
nádegas e zonas genitais; abraços demasiado longos e apertados”; “manutenção de relações
sexuais com pessoas em posições hierárquicas inferiores e/ou de
vulnerabilidade, enquanto estas se encontravam sob efeito de substâncias (ex.: álcool) e sem condições plenas para prestar
consentimento livre e esclarecido”; “manutenção de relações sexuais com
alunas/investigadoras cuja avaliação estava diretamente dependente das pessoas
que as procuravam”.
No assédio sexual, são elencadas situações como “erotização de gestos e
comportamentos por parte de alguns investigadores principais/professores na
relação com as investigadoras/alunas”; “excessiva
proximidade e contacto corporal, não autorizado e desadequado em
função da relação/grau de intimidade entre professores/investigadores e alunas
- beijos húmidos e demorados, olhares lascivos”; “propostas,
mais ou menos subtis, de relações íntimas, sugerindo ou não, ganhos
secundários e benefícios académicos como troca”; “comportamentos reiterados de
importunação sexual, como comentários sobre o corpo,
convites, mostrar-se disponível para relações com pessoas em posições hierárquicas
inferiores e/ou de vulnerabilidade, e tentativas de
controlo da vida sexual de alunas através
da realização de questões diretas sobre a vida íntima das mesmas”; “insistência para consumo de álcool por parte das
alunas/investigadoras/visitantes, com o intuito de obter contacto sexual”. São
também referidas variadas situações de “assédio moral”.
No relatório lê-se que “a maioria das pessoas denunciadas
rejeitou liminarmente as acusações descritas no Capítulo [do livro] e/ou
publicamente feitas, apontando razões políticas, ideológicas, pessoais e
académicas para as mesmas”, mas “uma minoria confirmou vários dos factos
alegados nas denúncias apresentadas pelas pessoas denunciantes, nomeadamente a existência de relações íntimas de cariz sexual entre professores/investigadores e
alunas/investigadoras, e a presença de situações de assédio moral e de abuso de
poder, usando a posição de superioridade hierárquica”. E algumas terão mesmo
afirmado que “‘toda a gente sabia’ das situações de assédio”.
Resta agora saber se a conclusão da Comissão de que
existiram “padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas
pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES” poderá levar a
alguma ação efetiva contra essas pessoas. O membro do CES ouvido pelo DN, e que
descreveu a apresentação do relatório, tem dúvidas: “A Comissão não pode
revelar os nomes das pessoas que denunciaram. Não sei como se poderão instruir
processos disciplinares sem que as vítimas ou denunciantes sejam identificados." Poderá assim suceder algo semelhante ao
ocorrido com o relatório sobre os abusos sexuais na Igreja Católica: não
houve praticamente consequências para os padres cujos nomes foram referidos
por essa outra comissão à Conferência Episcopal.
Tiago Santos Pereira, o diretor do CES, informou, na
apresentação do relatório aos jornalistas, que o relatório foi remetido ao
Ministério Público.
Fonte: Diário de Notícias, 14 de março de 2024
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