Da água ao fogo. Porque não fechou a N236-1, a "estrada da morte"?
Alfred
Hitchcock Presents / The Kiss-Off - Rip Torn, Mary Munday
Muitos dos que perderam a vida, cerca de 47, passaram a
tarde na praia fluvial das Rocas, em Castanheira de Pêra. Entraram em pânico e
ao querer fugir do fogo foram ao encontro dele. Há quem acuse a GNR de ter
indicado o caminho para a morte, mas as autoridades defendem-se: as chamas
foram mais rápidas do que alguma vez se podia imaginar. Haverá inquérito.
Faltava pouco para as 19h00, Hélia estava com os pés de
molho na piscina da Roca, em Castanheira de Pêra. O neto andava a chapinhar
pela água. Via-se o fogo, mas lá longe ainda. Nada que metesse medo. No
entanto, os raios anunciavam uma tempestade seca. O diretor da piscina mandou
todos saírem da água. Por precaução. O espaço estava prestes a fechar.
Muitos dos que passaram a tarde a banhos eram de fora da
povoação, estavam hospedados no Lagar do Lago. Lá estavam José e Sandra, dois
empregados do hotel em que estavam alojadas 37 pessoas. Lembram-se de tudo se
precipitar num instante. De repente, as chamas já circundavam a vila.
Passados poucos minutos, o que os dois empregados viram foi
algo de brutal. O pânico em estado puro começou a apoderar-se das pessoas.
Houve famílias a sair dos quartos e a deixar as malas para trás. Só queriam ir
dali para fora.
Uns metros à frente, no café-restaurante Gil, Lurdes
Henriques descreve o mesmo filme. "Muitos turistas até jantaram cá, mas
depois entraram em pânico. Queriam ir para Lisboa, só falavam em Lisboa. A uns
ainda lhes disse para irem para o lado da Lousã [local contrário à direção das
chamas], a outros, um casal com duas crianças, tanto lhes pedi para não irem.
Ainda levaram uma garrafa de água", lembra.
Todos afluíram à saída de Castanheira de Pêra na direção de
Figueiró dos Vinhos. A GNR estava no local. O IC8 foi cortado. A EN 236-1
estava aberta.
"Houve uma falsa indicação, muitas pessoas queriam sair
mas não sabiam para onde ir. Houve alguns militares da GNR que estavam a
indicar [o caminho] para a morte. Foi um fim-de-semana de horror",
enfatiza Sandra, empregada do hotel.
A gravidade do que aconteceu na "estrada da morte"
já levou o primeiro-ministro a reagir. Em entrevista à TVI na noite de
terça-feira, António Costa revelou a versão que a GNR lhe deu dos
acontecimentos.
"Que eu tenha conhecimento, não há nenhuma instrução
específica para o encerramento daquela via conforme aqui diz a GNR",
avançou.
Segundo o líder do Governo, a GNR justifica o que aconteceu com a "forma totalmente inesperada, inusitada e assustadoramente repentina" com que o fogo tomou a estrada, "surpreendendo todos, desde as vítimas aos agentes de Proteção Civil, nos quais se incluem os militares da Guarda Nacional Republicana".
Nem a GNR nem o Comando Distrital de Operações de Socorro de
Leiria quiseram responder a nenhuma questão sobre este assunto colocada pela Renascença.
Horas antes, a vice-presidente da Câmara Municipal de
Castanheira de Pêra, Ana Paula Neves, alinhava na mesma versão.
"Penso que ninguém contava, não era provável, nem
imaginável que houvesse um fenómeno que atuasse com esta rapidez e
destruição", afirmou a autarca à Renascença. "Penso que se fez tudo o
que se devia ter feito", defende.
Hélia, que esteve na piscina, mas não saiu de Castanheira,
onde mora, também não quer fazer uma caça às bruxas. Acredita que tudo foram
desmandos da natureza. "Agora as pessoas põem a culpa a uns e a outros,
mas foi tudo muito rápido. Não foi falta de A, de B, de C ou de D",
afirma, enquanto bebe um café no Gil.
A dona do café discorda da cliente. Sabe-se agora que já
havia mortes naquela estrada, pergunta porque é que ninguém a cortou. "A
GNR podia ter evitado muitas mortes. Fechava a estrada e evitava muitas
mortes", repete. "Se calhar, não valorizaram nada. Aqui as pessoas
chegavam em pânico a dizer que iam morrer todas", recorda a mulher, que
confidencia que desde a tragédia que não vê nem lê nada sobre o assunto.
"Não consigo."
Mas lembra-se de tudo com uma certeza. Se, por um lado,
responsabiliza os guardas, por outro, não compreende a decisão das pessoas.
"Se tivessem ficado
na piscina ou aqui no centro [da vila] as pessoas tinham ficado a salvo.
Eu dizia aos turistas para não se irem embora, que aqui não estávamos em
perigo. O fogo anda para ali e as pessoas vão em direção ao fogo?",
pergunta incrédula.
A revolta é tanta que, passados alguns minutos, volta a
disparar. Desta vez, até o Presidente da República leva um remoque. Diz que
gosta dele, mas não gostou de o ver desta vez.
"Para acompanhar o Marcelo já há muitos carros de
polícia e 'show-off', até gosto do Marcelo, mas não sei para que é que precisa
de tanta polícia. É um aparato que até revolta a população. Na altura em que
era preciso não se via ninguém. Agora vêm todos."
O comandante dos Bombeiros Voluntários de Castanheira de
Pêra, José Domingues, também defende que não havia informação que levasse a um
encerramento da via EN 236-1. "Penso que ninguém contava, ninguém pensava
que isto acontecia com tanta rapidez", argumenta.
"Não era provável, nem imaginável que houvesse um
fenómeno que atuasse com este nível de destruição", acrescenta.
José Domingues não quer ajudar a arranjar culpados. "Se
alguém mandou avançar viaturas fê-lo a pensar que iam em toda a
segurança", sustenta, sublinhando que com todos os anos que tem de serviço
nunca pensou assistir a um fenómeno desta magnitude.
Questionado sobre se a qualidade das explicações dadas pela
GNR o satisfazem, o primeiro-ministro garante que "a resposta final vai
surgir no devido tempo". Ainda assim, Costa diz que a justificação da
Guarda é consonante com o que lhe foi dito no terreno pelos autarcas, técnicos
das câmaras e populares.
No final, só depois do inquérito, se poderá dizer com toda a
certeza como e porque foram tomadas as decisões de não cortar aquela que se
tornaria tragicamente conhecida como a "estrada da morte".
Fonte: Rádio Renascença, 21 de junho de 2017
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