Os conspiracionistas estão ao rubro
Em
torno do ataque a Donald Trump, importará mais o punho erguido, o apelo à luta
e o repentismo dos efeitos da fotografia tirada, em detrimento de uma reflexão ponderada e informada
No último relatório da OCDE “Education at a Glance 2023”, é
apresentado um conjunto interessante de dados que estabelecem uma relação entre
qualificações académicas e competência cidadã.
Quanto
mais elevado é o nível de estudos mais provável é a participação em ações
cívicas e, de
forma importante, quanto mais
alta a qualificação académica menor é a crença em teorias da conspiração.
Este tipo de dados passa, infelizmente, ao lado dos debates sobre educação, mas
constitui um dos argumentos mais fortes para a relação forte entre o valor da
escola e a qualidade das democracias. Não é surpreendente, dado que a literacia de leitura, a literacia
científica e a literacia matemática, entre outras dimensões exploradas na
escola são os principais instrumentos para se poder exercer a
capacidade crítica perante o que é apresentado diariamente nos ecrãs de quem
frequenta as redes sociais que mais investem na divulgação de pseudoinformação.
Os partidos
antissistema, em particular os da extrema-direita, conhecem bem o
potencial do conspiracionismo na instalação do medo, da desconfiança, da
insegurança e da propagação do “nós vs. eles”. Não é por acaso que, bastando
olhar para o caso português, é nesse quadrante político que estão os campeões
dos que são desmentidos nos mais variados espaços de “fact-check”. A teoria da substituição da
população europeia, as falsidades sobre o peso dos imigrantes nas contas da
segurança social, os supostos relatórios (que afinal são colunas de opinião de
jornais locais) que negam as alterações climáticas, as teorias do caos dos
serviços públicos (também alimentadas pelos partidos neoliberais), as imagens
falsas de carros elétricos a arder, as declarações sobre pensões vitalícias…
a lista é tão grande que se torna difícil selecionar os exemplos mais
ilustrativos da ação destes agentes da desinformação.
O recente ataque a Trump, sobre o qual ainda se sabe pouco
quando escrevo, já está a ser pasto para os conspiracionistas pró e anti-Trump.
Para uns, o ataque foi uma
encenação bem montada, com o picante dos pormenores hollywoodescos,
em que quem morreu afinal não morreu e faz parte da megaprodução. Para outros,
esta é a prova de que os
democratas afinal se regozijam com os assassinatos dos que se dizem
contra o sistema. Do sangue falso à mão de Deus no virar da cabeça, das teses
sobre o que conseguem os snipers a partir de diferentes distâncias e com
diferentes armas, há de tudo na botica das redes sociais. A informação
fidedigna, que é ainda escassa, não interessa e tudo está a servir para
transformar um ataque numa estratégia bem conseguida para argumentação
eleitoral.
No contexto assustador das próximas eleições presidenciais
americanas, em que um fragilizado Biden não se afasta para dar lugar a um
candidato forte, que se oponha ao presidente que observou com bonomia o hediondo ataque ao Capitólio, cujas
posições misóginas e xenófobas se conhecem, este momento de violência é quase
unanimemente reconhecido como um trunfo fortíssimo na campanha de Trump.
E, como sempre, o conspiracionismo, que está ao rubro neste momento, alimentará, daqui até novembro, o debate deslocado daquilo que interessa. Há pormenores desta ocorrência, que são “pormaiores”, que podiam e deviam estar a ocupar o centro do debate. Trump é, alegadamente, vítima de um ataque por um jovem que tem acesso fácil a armas, como tantos jovens naquele país. O paradoxo de ser alvo de um atentado aquele que mais contraria as pressões existentes nos EUA para limitar a desregulada compra e posse de armas não agita os comentadores. Este jovem não é diferente dos que, quase todos os anos, são autores de tiroteios em escolas secundárias naquele país. E Trump continuará a defender o NRA, onde encontra uma prototípica parte dos seus apoiantes.
Trump discursava contra os imigrantes no exato momento em
que se ouvem os tiros. Mas fica de fora da discussão o facto de o atirador ser branco,
cidadão norte-americano, contrariando a propalada insegurança e
violência que os trumpistas e seus seguidores no mundo inteiro dizem estar
associada à imigração. Este podia ser o momento para se mostrar que a violência
não escolhe etnias ou identidades em passaportes. Mas nada disso acontecerá,
porque os factos não interessam aos conspiracionistas. Trump e os seus
seguidores alimentam a polarização
dos discursos, a ideia de que há uma esquerda woke violenta e
legitimadora de ataques sobre os puros da direita. Não lhes convém, pois,
comentar a alegada inscrição do atirador como simpatizante do Partido
Republicano.
As imagens dos apoiantes de Trump a seguir ao ataque a
acusarem os jornalistas presentes de responsabilidade pelo atentado não são
tidos como um sintoma da
perversão existente na relação dos políticos antissistema com a imprensa livre.
Este podia ser um tema a ser discutido em torno deste ataque. Como o
enfraquecimento do jornalismo independente e factual perante o crescimento das
redes sociais que fomentam ódio, desinformação e polarização potencia a
disfuncionalidade do debate político.
Nada disto interessa, porque importará mais o punho erguido,
o apelo à luta e o repentismo dos efeitos da fotografia tirada, em detrimento
de uma reflexão ponderada e informada. É nesta medida que muitos têm escrito, e
eu concordo, que estes tiros foram dados na própria democracia.
Os conspiracionistas estão ao rubro, de um lado e do outro,
porque alimentam a fragilidade das democracias e isso é o seu objetivo primeiro
e último. Valha-nos a
educação, que, conforme documentado pela OCDEm continuará a ser o
principal instrumento para nos movermos neste tempo estranho, e o jornalismo rigoroso e independente,
que continuará a ser o garante de que a palavra e a ética valem mais do que o
grito e a manipulação.
Fonte: Expresso, 15 de julho de 2024
Ninguém refere o óbvio: que anomalia existe na sociedade muito moderna, que leva um jovem, com a vida por viver, a importar-se com um velho, a imolar-se por alguém no ocaso da vida, alguém com poucos anos para viver?
Se o atirador tivesse calma, se as escolas realmente ensinassem algo, dentro de 10 anos, Trump estará na quinta das tabuletas e ele teria 30 anos.
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