A visita de Samora Machel em 1983
Sexta-feira, 7 de outubro de 1983, “Samora Machel,
presidente da República Popular de Moçambique, encontra-se desde esta tarde em
Lisboa, para uma visita de cinco dias a Portugal. O chefe de Estado moçambicano
deixara esta manhã a Holanda, depois de ter visitado a Bélgica. Ontem à noite,
em Haia, numa entrevista, Samora Machel, referindo a visita que hoje inicia,
destacou que ela permitirá o estabelecimento definitivo da ‘igualdade entre o
povo português e o povo moçambicano’. O estreitamento das relações entre os
dois países foi igualmente tónica na entrevista ontem transmitida pela RTP 1
durante a qual o presidente salientou que com esta sua visita se criam
‘relações de novo tipo’. Samora Machel, que fica instalado no palácio de
Queluz, tem ao fim da tarde de hoje um primeiro encontro com o presidente
Ramalho Eanes não estando incluída no programa qualquer outra cerimónia oficial
para o dia de hoje.”
“São 16:12 e o aparelho da TAP com as insígnias moçambicanas
pintadas ao alto já está na aerogare. As pessoas apinham-se e tentam divisar
Samora no meio da sua comitiva, que caminha em direção à guarda de honra.
Separam-nos uns duzentos metros da placa e toda a gente quer saber: qual é ele? É o da farda verde,
responde alguém, não, está de verde, mas não tem farda. Acolá, acolá, ao lado
do Eanes, é ele… replicam outros. (…) No ar troam as salvas de saudação,
isso não, guerra é que não, agora somos amigos, observa uma mulher que logo
cora e retém o calafrio que lhe sobe pela garganta: a banda militar toca os
hinos e o silêncio cai de novo.” “Foi o delírio. De repente chovem palmas,
ouvem-se vivas a Samora e à Frelimo, lágrimas descem de muitos olhos, degelam
alguns corações. São brancos, negros e mestiços, portugueses, moçambicanos,
cabo-verdianos, gente de todas as idades e condições. No interior do Mercedes
600 de seis portas da Presidência da República o chefe de Estado moçambicano
acena à multidão reunida para o saudar, frente ao aeroporto. Viva Moçambique,
grita um homem de idade avançada com a pele marcada por muitas décadas de sol
de África. Dominando a custo a emoção, calcando com quanta força tinha os
ressentimentos e os ódios do passado, o ex-colono sintetiza o sentir de muitos
ali presentes: somos de novo amigos.”
“À chegada a Queluz, frente ao palácio, concentrava-se
grande número e populares. A banda tocou os hinos nacionais dos dois países.
Ouviram-se então vivas a Moçambique e a Samora Machel. Os dois presidentes
passaram revista à guarda de honra e depois encaminharam-se para os populares
que os saudavam. Uma
mulher diz para Samora Machel: ‘Eu nasci em Moçambique!’. Samora abraça-a e
diz-lhe: ‘Este é o abraço do povo inteiro de Moçambique para todo o povo
português’. (…).
Às 18:30 Samora Machel chegou a Belém para novo encontro com Ramalho Eanes. (…). Os dois presidentes trocaram prendas. Samora ofereceu a Eanes uma escultura em madeira e uma pele de zebra. Por sua vez, Ramalho Eanes ofereceu um serviço de copos de cristal português constituído por 74 peças.” “O programa oficial previa um jantar íntimo para as 20:15 no palácio de Queluz. Estavam preparados 12 lugares e chegou-se a pôr a hipótese de Ramalho e Manuela Eanes estarem presentes. Às 20:45 chega o cortejo presidencial e desfazem-se as dúvidas. Eanes fica em Belém e os seus filhos receberam um convidado: o filho mais novo de Samora e Graça Machel, um pequeno irrequieto de simpático, de 4 ou 5 anos, ficou para brincar. (…). Na ementa teve lombo assado com espargos e cogumelos, linguado suado e vinho Tuella. Na cozinha, além do pessoal da ‘cozinha velha’ dois profissionais vindos de Maputo. Para assegurar o serviço interno do palácio estão em Queluz uma ou duas dezenas de pessoas, entre engomadeiras e pessoal de quarto e também criados de mesa vindos do palácio de Belém.”
“Entre amigos, não há protocolo, Samora Machel, um homem
imprevisível, tem quebrado todas as barreiras que o cerimonial oficial impõe,
insistido no facto de estar entre amigos – o brilho dos meus olhos transmite o
que me vai no coração, diria na manhã de sábado, 8 em Queluz, aos jornalistas.
O presidente moçambicano, desde a sua chegada, faz questão em sublinhar que
Portugal e os portugueses são um caso à parte. (…). Iniciou o programa hoje dia
8 com uma visita à Câmara Municipal de Lisboa, seguindo-se uma entrevista com o
primeiro-ministro, Mário Soares, em Queluz. (…). Terminado o encontro, o
presidente moçambicano diria aos jornalistas que os ‘dois governos serão
instrumentos da vontade dos respetivos povos’. (…). Por seu lado, Mário Soares
diria que ‘vamos avançar mesmo muito com base no respeito mútuo, na
reciprocidade absoluta’. Já ao fim da manhã o presidente Samora Machel esteve
no mosteiro dos Jerónimos onde depositou uma coroa de flores no túmulo de
Camões. Numa fita vermelha lia-se: ‘Homenagem do presidente da República
Popular de Moçambique’.” Disse ele aos jornalistas: “Camões já não é apenas património dos portugueses,
mas sim de todos os que falam a sua língua.”
Domingo, 9 Samora Machel, em
Coimbra, quis conhecer aquele que seria o futuro sogro de Vasco Graça Moura
(casou-se em 1985 com a filha de Miguel Torga, Clara Crabbé da Rocha). “Miguel
Torga fez hoje duas coisas que exprimem a grande amizade que o liga a Ramalho
Eanes e o apreço em que teve a vista de Samora Machel: foi a um banquete no
palácio de S. Marcos e viajou de helicóptero. É conhecida a relutância do poeta
em participar em manifestações públicas de caráter mais ou menos social e a sua
tendência a um certo recolhimento e austeridade da maneira de viver. A sua
presença no almoço de Coimbra (…) esteve comprometida. Em princípio esteve para
não comparecer, mas um telefonema da dra. Manuela Eanes acabou por convencê-lo.
Depois foi de helicóptero com os dois presidentes até Pedras Rubras. Mas antes
fizeram um desvio e sobrevoaram os socalcos do Douro e as terras onde o poeta
mergulha as suas raízes.”
Segunda-feira, 10 “Depois das sucessivas homenagens ao povo
português, uma homenagem especial aos militares. Foi esta manhã, em Tancos,
base de paraquedistas qua há dez anos ainda partiam para a guerra colonial. A
cerimónia, que se revestiu de alto significado, decorreu cerca das 11:00, tendo
o presidente moçambicano viajado de helicóptero desde Guimarães, onde
pernoitara. Saudado à sua chegada pelo almirante Silva Horta, em representação
do presidente da República, pelo brigadeiro Almendra, comandante das tropas
paraquedistas, e pelo coronel Lousada, comandante da unidade, Samora Machel, ao
som da fanfarra, depôs uma coroa de flores no monumento aos mortos
paraquedistas.”
Samora Machel almoçou com cerca de duas centenas de
empresários no Estoril-Sol. “‘O vosso empenho, a vossa determinação são
bem-vindos a Moçambique’ – disse a certa altura Samora Machel que exaltou a
inteligência, a capacidade e a criatividade o homem português. (…). Manuel
Teles, que presidia à comissão que organizou aquele almoço ofereceu, no final, uma prenda ao presidente Samora
Machel – um centro de mesa em prata – e uma medalha comemorativa. Os empresários ficaram impressionados com a vivacidade e
a inteligência de Samora Machel que mostrou estar não só dentro de
todas as questões como conhecia muitas delas até ao pormenor. Um gesto de simpatia veio da presidência da Câmara
Municipal de Cascais, Helena Roseta, que trouxe um ramo de flores
para oferecer ao presidente moçambicano.”
Terça-feira, 11 na notória casa de Nafarros. “Participam no
almoço e nas negociações que se lhe seguirão, além de Samora e Soares, o
ministro Almeida Santos e o seu homologo moçambicano, com responsabilidade na
área do Plano, Jacinto Veloso. Presente estará igualmente Aquino de Bragança
que teve aliás um papel de relevo na preparação deste encontro
qualificado de ‘não protocolar’. (…). Espera-se que aí venham a ser lançadas
algumas pontes concretas que permitam dar corpo a algumas das ideias que vêm
sendo desenvolvidas no domínio da intensificação da cooperação entre os dois
países.”
Quarta-feira, 12 dia da partida, “precisamente dois minutos
antes do meio-dia, o presidente moçambicano fez uma curta alocução os
jornalistas no aeroporto. Vibrante e emotivo nas suas palavras, Samora diria:
“Estamos na hora da partida. Quando chegámos trazíamos connosco a emoção de
pisar pela primeira vez o chão lusitano libertado. Vínhamos carregados de
expetativa, mas cheios de otimismo. Sobretudo, quando chegámos trazíamos o
abraço fraterno e largo do povo moçambicano para o povo português. (…). Os povos
manifestam-se na sua simplicidade, com a franqueza dos seus sentimentos, com a
dignidade própria e o esclarecimento. Os povos identificam-se nestes valores, a
partir dos quais as relações entre os povos se transformam em atos de
sociedade. Foi este abraço, foi esta mensagem, que trouxemos ao povo
português.”
Desligadas as luzes, a escuridão de um povo falido
acendeu-se. A RTP no Telejornal de 11 de outubro noticiava uma linha de crédito
de 10 milhões de contos para Moçambique. “Fontes dignas de crédito garantiram
que Ernâni Lopes, que não
viu o Telejornal nessa noite, soubera da notícia sobre a concessão da linha de
crédito por intermédio de uma das suas filhas quando passou por casa, a
caminho do palácio de Queluz. [Onde nesse mesmo dia Samora Machel dava uma
receção oficial em honra de Eanes para a qual foi convidado o ministro das
Finanças, Ernâni Lopes e, naturalmente os outros membros do governo português].
Uma fonte diplomática disse que o titular da pasta das
Finanças, chegado à
receção furibundo provoca um miniconselho de ministros chama de parte
Mário Soares e Jaime Gama, fala com eles, e, desesperado, atribui à secretaria
de Estado da Cooperação a fuga da informação dada horas antes pelos serviços
noticiosos do Telejornal. Para
Ernâni Lopes não pode haver qualquer concessão de linha de crédito que já havia
sido prometida às autoridades moçambicanas. Sabe-se que Luís Gaspar da
Silva, secretário de Estado da Cooperação se recusa a dar o dito pelo não dito:
negócios são negócios e palavra só deve existir a da honra. Já durante a
receção alguns moçambicanos aperceberam-se que nem tudo estava a correr pelo
melhor. A discussão entre Mário Soares, Jaime Gama e Ernâni Lopes prossegue
pala madrugada dentro. O titular dos Negócios Estrangeiros acaba mais tarde por
apoiar a linha do primeiro-ministro baseada na posição do ministro das
Finanças. O miniconselho de ministros chega a acordo: é preciso dizer à
delegação da República Popular de Moçambique, que, afinal, não há um só tostão disponível para
constituir linha de crédito a favor de Maputo.
Às 8:00 do dia 12 – quatro horas antes da partida de Samora
Machel – as autoridades portuguesas comunicam a decisão de Queluz aos
moçambicanos. (…). A delegação visitante, perante a atitude do Governo
português, recusa-se, em princípio, a deslocar-se ao palácio da Ajuda para a
cerimónia da assinatura de um acordo de cooperação judiciária e de um outro de
amizade. Só a posterior intervenção do presidente Samora Machel junto dos
ministros moçambicanos faz reconsiderá-los na decisão assumida.”
Portugal, sem tusto, à janela, a ver passar negócios, o
dinheiro morava na Europa. “Horas depois o presidente da República Popular de
Moçambique deixava Lisboa rumo a Belgrado de onde seguirá depois para a França
e Inglaterra, no âmbito de uma visita à Europa que iniciou na Holanda antes de
passar pela Bélgica.”
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