Budas e mausoléus destruídos são vítimas colaterais em Gaza e Líbano
Perry Mason
(1957-1966) – Fintan Meyler, Raymond Burr
No
Líbano, durante o último ano, o número de locais religiosos destruídos ou
danificados pelo exército israelita aumentou
O mundo inteiro lembra-se da surpresa internacional diante
da destruição dos Budas de Bamyan ou
dos mausoléus de Tombuctu. Na Faixa
de Gaza, na Cisjordânia ocupada e no Líbano, além dos mais de 44 mil mortos, as
destruições e profanações de locais religiosos são massivas, e as reações são
tímidas.
“Em Gaza hoje, Deus está sob
os escombros”, afirmava em dezembro de 2023 o pastor Munther Isaac,
de Belém. No início de outubro de 2024, um ano após o início da guerra, o
ministério das Assuntos Religiosos de Gaza anunciou que 814 mesquitas tinham sido destruídas e 148 danificadas, e
que três igrejas tinham sido aniquiladas no enclave sitiado. Entre
esses edifícios, em dezembro de 2023, a famosa mesquita de Al-Omari, a maior e mais antiga
mesquita do território, que já foi um templo romano e depois uma igreja,
fundada há mais de 1400 anos e com uma área de 4100 m², teve seu minarete
destruído algumas semanas antes.
Quanto à igreja
ortodoxa de São Porfírio em Gaza, o seu anexo foi derrubado já em
outubro de 2023. Era a igreja mais antiga ativa na cidade. Construído em 1150,
esse local de culto grego ortodoxo, que abrigava o túmulo do antigo bispo de
Gaza, Porfírio, canonizado por ter cristianizado a cidade no início do século
V, tornou-se um local de refúgio para os habitantes de Gaza. O patriarca
ortodoxo de Jerusalém qualificou o ataque como um “crime de guerra”, lembrando
que as igrejas servem de abrigo “para proteger cidadãos inocentes”. A ONG
americana Justice For All apresentou no final de abril uma petição Tribunal Penal
Internacional (TPI) para que o bombardeamento da igreja de São Porfírio fosse
reconhecido como um “crime de guerra”.
No Líbano, durante
o último ano, mas especialmente em outubro e novembro de 2024, o número de
locais religiosos destruídos ou danificados pelo exército israelita aumentou,
com mais de trinta mesquitas bombardeadas.
Em 16 de novembro, Israel dinamitou o santuário xiita da cidade de
Chamaa, atribuído ao apóstolo cristão São Simão; um local do século XI,
venerado pelas comunidades xiitas e cristãs. Bombardeamentos no bairro cristão
de Haddad, ao sul de Beirute, afetaram, entre outros, o Hospital São Jorge e uma igreja. Na entrada
do templo de Baalbek, as igrejas maronita Saydet al-Mounet e ortodoxa Mar
Gerios também foram danificadas durante os bombardeamentos.
No deserto de Negev,
o exército israelita também expulsou uma comunidade beduína da sua aldeia no
mês passado e destruiu tudo o que pôde, incluindo uma pequena mesquita.
Em todo o lado, a lista de destruições cresce. “Quando temos
um lugar para a adoração de Deus, para a veneração, isso é algo bom para a
humanidade”, testemunha Hanna Rahme, bispo maronita de Baalbek. “Se
bombardeamos esses locais, é o desarraigo de uma sociedade, de uma civilização
ou de uma comunidade. Isso é muito perigoso. Não podemos aceitar o que acontece
no Líbano ou na Palestina. Israel vai além de tudo”.
Profanações múltiplas
Muitos cemitérios foram profanados nos últimos quatorze
meses em todos os lugares onde os soldados israelitas atuaram. Os edifícios
sagrados não ficaram de fora. Em meados de 2024, por exemplo, soldados israelitas
filmaram-se profanando a mesquita
Bani Saleh, ao norte da Faixa de Gaza, e rasgando exemplares do Corão, o
livro sagrado dos muçulmanos.
Outro exemplo em dezembro do ano passado: imagens mostravam soldados israelitas dentro de
uma mesquita no campo de refugiados de Jenin, na Cisjordânia ocupada,
usando os alto-falantes para recitar o Shema Yisrael, uma oração central do
judaísmo. No final do vídeo, risadas são ouvidas enquanto as tropas saem da
mesquita e uma canção de Hanukkah é tocada, também pelos alto-falantes. Um comportamento
que “pode levar a região a uma guerra religiosa”, afirmou o porta-voz da
presidência palestina, Nabil Abou Roudeina.
Em Hebron, em setembro de 2024, a agência de notícias Wafa
relatou que uma centena de
colonos profanou a mesquita dos Patriarcas da cidade velha, fazendo
danças talmúdicas ao som de música alta, tudo sob a proteção do exército israelita.
No Líbano, em novembro passado, soldados filmaram-se simulando um ato sexual e escarnecendo
da Santa Virgem numa igreja do sul do país.
Apagar todo e qualquer vestígio de cristianismo e
islamismo
“Acho que a questão não é tanto religiosa, mas sim
nacionalista, histórica”, analisa o historiador Bernard Heyberger, especialista
em Médio Oriente. “Há na direita ou
extrema-direita israelita a vontade de mostrar que o território é judeu desde
os tempos da Bíblia, que há um tipo de antecedente. É uma legitimidade fundada
na história. Se apagarmos os monumentos religiosos dos muçulmanos e cristãos, é
uma forma de afirmar mais fortemente a legitimidade judaica sobre o território.”
Lembrando que, em 1974, Yasser Arafat declarou na tribuna da
ONU: “Lutamos para que
judeus, cristãos e muçulmanos possam viver na igualdade, gozar dos mesmos
direitos e cumprir os mesmos deveres, sem discriminação racial ou religiosa”.
Em 30 de novembro, o ministro israelita de Segurança
Nacional, Itamar Ben-Gvir, ordenou à polícia que
confiscasse definitivamente os alto-falantes das mesquitas que violassem a “lei
Muezzin”, que desde 2017 proíbe o uso de alto-falantes para os
chamados à oração tarde da noite e ao amanhecer.
Locais protegidos pelo direito internacional
Israel destrói os locais religiosos, mas também uma grande
parte do património, alegando que esses locais
são esconderijos de membros ou arsenais do Hamas ou do Hezbollah. O
facto de atacar locais religiosos é, no entanto, considerado um crime de guerra
de acordo com o direito humanitário internacional, especialmente a Convenção de
Haia de 1907 e a Quarta Convenção de Genebra de 1949.
“Não sei onde está a moral, a consciência moral da
comunidade mundial, das Nações Unidas”, questiona o bispo de Baalbek. “Não é
permitido deixar Israel destruir assim.”
Em 24 de março de 2017, o Conselho de Segurança da ONU
adotou por unanimidade a resolução 2347 sobre a proteção do património
cultural, incluindo a destruição de sítios e objetos religiosos.
“Há um ano ninguém levanta a voz para dizer ‘parem esta
guerra'”, lamenta Mohammed Nokkari. “Quando se trata de lugares de culto para
muçulmanos, fica-se em silêncio. O mesmo acontece com as igrejas. Mas quando se trata de atacar uma sinagoga ou outros locais de culto, levantam-se vozes e
protestos. Há uma grande discrepância.”
Em 2016, o TPI condenou um jihadista maliano a nove anos de prisão pelo seu papel
na destruição dos mausoléus de Tombuctu. “Quando penso em Gaza, penso
primeiro nas pessoas, antes de pensar nas ruínas”, insiste o historiador
Bernard Heyberger. “Mas se destruímos monumentos, destruímos o testemunho de
algo que existiu”.
Fonte: Metrópoles, 3 de dezembro de 2024
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