A guerra cultural da CIA: arte, intelectuais e propaganda na Guerra Fria

Durante a Guerra Fria, a disputa entre os blocos capitalista e comunista não se limitou aos campos de batalha, aos gabinetes diplomáticos ou à espionagem convencional. Uma das frentes mais sofisticadas — e menos conhecidas — foi o domínio simbólico e cultural: numa tentativa de definir, internacionalmente, o que significava “liberdade”, “modernidade”, “criatividade” e “progresso”. A cultura tornou-se, assim, uma arma crucial na disputa ideológica global.

É neste contexto que a CIA, fundada em 1947, assumiu um papel central na promoção de uma agenda cultural destinada a conter a influência soviética, especialmente junto das elites intelectuais europeias. O principal objetivo era conquistar os “corações e mentes” das classes educadas, afastando-as do comunismo — não através de tanques ou sanções, mas por meio da arte, da literatura e da crítica cultural.

Um dos casos mais representativos dessa estratégia cultural foi o apoio ao expressionismo abstrato americano. Artistas como Jackson Pollock, Willem de Kooning, Mark Rothko e Robert Motherwell eram politicamente críticos em relação ao capitalismo, mas foram promovidos como símbolos da liberdade criativa do Ocidente. Pollock, por exemplo, ignorava completamente que a sua arte estava a ser utilizada como ferramenta da CIA. Outros artistas, como Motherwell, tinham uma consciência maior das dinâmicas envolvidas.

A CIA não interveio diretamente sobre os artistas nem controlou a criação artística, mas utilizou estruturas intermédias — especialmente o Congresso pela Liberdade da Cultura (Congress for Cultural Freedom, CCF), fundado em 1950 e financiado até 1966 — como mecanismo de promoção encoberta do expressionismo abstrato. O MoMA (Museum of Modern Art), sob a liderança de figuras como William S. Paley e Nelson Rockefeller — ambos com ligações à CIA ou à antiga OSS — foi também fundamental, servindo de plataforma institucional para as exposições patrocinadas pelo CCF.

Críticos influentes como Clement Greenberg colaboraram na construção desta "visão ocidental", contrastando o expressionismo abstrato com o rigor dogmático do realismo socialista soviético e apresentando-o como a encarnação de um modelo cultural de liberdade individual. "Enquanto os soviéticos impõem uma arte servil ao Estado, os EUA celebram a liberdade do gesto individual — como nas telas de Pollock, onde não há ditadura da forma” – Clement Greenberg, Art and Culture (1961)

As exposições organizadas sob este plano — tais como The New American Painting (1958–59), Modern Art in the United States (1955) ou Masterpieces of the Twentieth Century (1952) — financiadas indiretamente pela CIA — circularam por grandes capitais europeias e ajudaram a consolidar a reputação global do movimento.

Embora o expressionismo abstrato existisse por mérito artístico próprio, a CIA reconheceu nele uma poderosa metáfora da espontaneidade e individualidade, em oposição ao realismo socialista soviético, considerado rígido e opressivo. A tática consistia em usar a arte como burguesa e irracional, mas precisamente nisso residia o seu valor simbólico como contraponto ideológico.

Além das artes visuais, a CIA desenvolveu uma estratégia cultural ainda mais ampla. Criou e financiou o Congress for Cultural Freedom (CCF), uma organização com escritórios em dezenas de países, que coordenava revistas de grande prestígio, como Encounter (Reino Unido),

Preuves (França),


Der Monat (Alemanha)

e Tempo Presente (Itália). Estas publicações, embora formalmente independentes, difundiam uma visão do mundo liberal, humanista e anticomunista, ajudando a consolidar um consenso intelectual alinhado com os interesses ocidentais. Muitos dos seus colaboradores — como Stephen Spender, Raymond Aron ou Ignazio Silone — desconheciam que estavam a ser indiretamente financiados pela CIA, o que só se tornaria público nos anos 1960, após revelações no New York Times e na revista Ramparts.

A música também foi amplamente instrumentalizada nesta ofensiva cultural. O jazz, em particular, foi promovido como um símbolo de liberdade, diversidade e improvisação — qualidades apresentadas como intrinsecamente ligadas ao espírito democrático norte-americano. Para isso, a CIA e o Departamento de Estado dos EUA organizaram festivais, distribuíram discos no estrangeiro e patrocinaram digressões de músicos em países da esfera soviética e em nações não alinhadas.

Nos anos 1950 e 1960, figuras como Louis Armstrong, Dizzy Gillespie, Duke Ellington e Dave Brubeck foram enviados em “missões diplomáticas” de jazz, incluindo a célebre digressão de Brubeck na União Soviética em 1958. Estas tournées, apresentadas como intercâmbio cultural, funcionavam também como propaganda subtil, associando os valores da improvisação e da criatividade artística ao modelo de liberdade promovido pelos EUA, em contraste com a rigidez cultural do bloco soviético.

Após abril de 1974, o célebre iate Apollo apareceu por Portugal para concertos do seu jazz fusion e propagação da ideologia dos livres. Constavam rumores de que estariam ligados à CIA, o que originou uma revolta na Madeira onde carros, estacionados na Pontinha, foram atirados ao mar.

Este esforço cultural não visava necessariamente a glorificação da América, mas antes a construção de uma alternativa simbólica ao modelo soviético. A arte, a música e a literatura tornaram-se armas subtis de uma guerra ideológica total. Como referiu Frances Stonor Saunders, autora de A Guerra Fria Cultural: A CIA e o Mundo das Artes e das Letras, o objetivo era usar a cultura como “um campo de batalha clandestino, onde se ganhavam guerras sem disparar uma única bala”.

A ironia histórica está no facto de que muitos dos artistas, escritores e músicos assim promovidos eram profundamente críticos dos próprios Estados Unidos — mas, enquanto fossem anticomunistas, tornavam-se úteis. A CIA não pretendia impor uma doutrina estética ou ideológica rígida; queria, antes de tudo, enfraquecer a atração do marxismo no pós-guerra europeu, neutralizando o poder político e simbólico do comunismo.

O resultado foi a construção de uma elite cultural transatlântica profundamente influenciada por este "soft power" encoberto. A Guerra Fria foi também, e talvez sobretudo, uma guerra pela definição da cultura — e nela, a CIA não ficou atrás da KGB.

O MoMA como satélite cultural da CIA

Durante o auge da Guerra Fria, o Museum of Modern Art (MoMA), em Nova Iorque, não foi apenas um dos mais prestigiados museus de arte do mundo ocidental — foi também, ainda que discretamente, um importante instrumento de projeção ideológica dos Estados Unidos. Funcionando como uma espécie de “satélite” cultural da CIA, o MoMA desempenhou um papel central na promoção internacional do expressionismo abstrato e de uma estética que servia, simbolicamente, os interesses geopolíticos do bloco capitalista.

O MoMA foi fundado em 1929, mas a sua viragem decisiva dá-se após a Segunda Guerra Mundial, sob a direção de Alfred H. Barr Jr., com forte influência de Nelson Rockefeller, que presidiu ao museu entre 1939 e 1948 e manteve uma ligação próxima até aos anos 1970. A família Rockefeller não só financiava o museu como também participava nos bastidores da política externa dos EUA. Nelson, em particular, era simultaneamente empresário, colecionador, político e, nalguns momentos, conselheiro presidencial — o que lhe permitia articular interesses financeiros, culturais e estratégicos.

Segundo a investigação da historiadora Frances Stonor Saunders (The Cultural Cold War: The CIA and the World of Arts and Letters, 1999), o MoMA agia de forma informal como um braço cultural do Departamento de Estado e da CIA, ajudando a selecionar, promover e internacionalizar uma estética artística que simbolizasse os valores do “mundo livre”: liberdade criativa, individualismo, inovação formal e rejeição de visões ideológicas explícitas. Neste sentido, o expressionismo abstrato americano — uma arte deliberadamente ambígua, formalmente radical e sem mensagem política visível — era ideal.

Lucifer (1947) Jackson Pollock

Muitos dos artistas promovidos (como Jackson Pollock, Mark Rothko, Willem de Kooning ou Robert Motherwell) eram politicamente progressistas ou até ex-simpatizantes comunistas. No entanto, a CIA estava menos preocupada com a orientação ideológica individual dos artistas do que com o poder simbólico da obra. A arte abstrata tornou-se, assim, uma arma cultural eficaz para contrastar com o realismo socialista soviético, considerado rígido, doutrinário e antiquado.

O MoMA, em cooperação com o Congress for Cultural Freedom, organizava exposições itinerantes por toda a Europa e América Latina, financiadas discretamente por fundos associados à CIA. Entre estas exposições destacou-se The New American Painting (1958–59), que percorreu várias capitais europeias como Paris, Berlim e Milão, apresentando o expressionismo abstrato como a grande vanguarda estética do Ocidente. A exposição teve um impacto profundo, consolidando a imagem dos EUA como centro da inovação artística mundial — um papel que antes da guerra era reservado a Paris.

O envolvimento do MoMA com esta estratégia não se dava por ordens diretas da CIA, mas sim por uma densa rede de afinidades ideológicas, contactos institucionais e financiamentos cruzados. William S. Paley, presidente da CBS e membro do conselho do MoMA, era também colaborador da CIA. John Hay Whitney, outro nome de peso do museu, fora embaixador dos EUA no Reino Unido e um dos mecenas da propaganda cultural americana. Estes vínculos tornavam o MoMA uma interface privilegiada entre o mundo da arte e os interesses geoestratégicos da elite americana.

A arte moderna foi, portanto, não apenas uma expressão estética autónoma, mas um campo de batalha simbólico. O MoMA, ao canonizar certos artistas e movimentos e ao exportá-los sob a bandeira da liberdade cultural, participou ativamente numa operação ideológica disfarçada de cosmopolitismo artístico.

A revista Encounter e o financiamento encoberto da CIA

Fundada em 1953, em Londres, Encounter foi durante décadas uma das mais prestigiadas revistas culturais e políticas do mundo anglófono. Reunia artigos de ensaístas, romancistas, filósofos e poetas de renome — de W.H. Auden a Isaiah Berlin, de Stephen Spender a Arthur Koestler — e apresentava-se como uma publicação de alto nível intelectual, liberal, moderada e pluralista. Porém, como veio a revelar-se nos anos 1960, a revista era secretamente financiada pela CIA através de uma complexa rede de fundações e organizações de fachada.

A estrutura de fachada: Congress for Cultural Freedom

Encounter era publicada sob os auspícios do Congress for Cultural Freedom (CCF), criado em 26 de junho de 1950 em Berlim Ocidental com o objetivo de mobilizar intelectuais e artistas contra a influência soviética. O CCF organizava conferências, financiava bolsas de estudo, criava centros de investigação e lançava revistas em várias línguas — entre as quais Preuves (em francês), Der Monat (em alemão) e Encounter (em inglês).

O financiamento do CCF vinha disfarçadamente da CIA, canalizado através de fundações como a Farfield Foundation e a Ford Foundation. Esta última, embora autónoma, era frequentemente utilizada como cobertura institucional para fluxos financeiros que não se desejava rastrear até Langley, Virgínia. O objetivo era claro: promover uma elite intelectual que defendesse valores democráticos, liberais, anticomunistas — mas sem parecer alinhada com a propaganda oficial americana.

Os rostos da revista: Spender, Kristol e a sofisticação anticomunista

O poeta britânico Stephen Spender, que fora simpatizante comunista na juventude, foi um dos primeiros editores de Encounter, ao lado do ensaísta americano Irving Kristol, que mais tarde seria considerado o “pai do neoconservadorismo”. Esta combinação entre ex-esquerdistas desiludidos e liberais pragmáticos era cuidadosamente calibrada para dar à publicação uma aparência de independência crítica e abertura intelectual — ao contrário da imprensa ideológica soviética.

Encounter tornava-se assim um fórum privilegiado para a chamada “esquerda antitotalitária”: um espaço onde se podia criticar a URSS, defender a liberdade artística, a economia mista e os direitos humanos, sem alinhar com o radicalismo da Guerra Fria mais belicista. No entanto, a linha editorial da revista era consistentemente hostil ao marxismo e aos movimentos de esquerda mais radicais, com especial atenção ao contexto europeu.

A revelação do escândalo e as consequências

Em 1967, uma série de investigações jornalísticas (nomeadamente do New York Times e da revista Ramparts) revelou que a CIA tinha financiado o Congress for Cultural Freedom durante quase duas décadas. A notícia provocou um escândalo internacional. Spender demitiu-se de imediato da direção da Encounter, declarando-se “traído”. A reputação da revista sofreu um golpe severo, embora tenha continuado a ser publicada até 1990, já sob novos auspícios.

O caso da Encounter tornou-se paradigmático das ambiguidades morais e políticas da Guerra Fria cultural. Muitos dos autores que nela escreviam ignoravam totalmente a origem dos fundos. Outros, como Kristol, reconheciam tacitamente que “a política cultural precisa de patrocinadores”. O dilema era evidente: a CIA, inimiga da democracia noutros contextos (como na América Latina ou no Sudeste Asiático), apresentava-se aqui como mecenas esclarecida da liberdade intelectual — desde que dirigida contra os comunistas.

Relevância histórica

A história de Encounter ilustra de forma clara a sofisticação da estratégia americana de "soft power" durante a Guerra Fria. A batalha ideológica não se travava apenas com tanques e tratados, mas com revistas, conferências, exposições, filmes e poemas. A CIA percebeu que moldar a sensibilidade cultural da elite era tão importante quanto apoiar golpes de Estado — e Encounter foi um instrumento central dessa missão invisível.

A influência do Congress for Cultural Freedom em Portugal

A penetração cultural em Portugal durante o século XX, particularmente no contexto da Guerra Fria, contou com uma rede complexa de revistas, intelectuais e eventos ligados, direta ou indiretamente, ao Congress for Cultural Freedom (CCF). A revista Seara Nova, fundada em 1921, nunca recebeu financiamento direto do CCF, mas destacou-se como espaço de oposição moderada ao regime salazarista, publicando vozes liberais antifascistas como António Sérgio, que defendiam uma ideia de “Europa livre” próxima dos valores dessa organização. Colaboradores individuais (como João Bénard da Costachegaram a participar em eventos como o Encontro de Genebra (1966) sobre "Liberdade e Cultura" organizados pelo CCF, sinalizando uma afinidade intelectual com aquela rede. Já a revista O Tempo e o Modo (1963–1971), vinculada a católicos progressistas como Nuno Bragança, beneficiou de apoio indireto de fundações norte-americanas como Ford e Rockefeller, conhecidas por financiar iniciativas culturais alinhadas com os ideais liberais e anticomunistas do pós-guerra.

Entre os intelectuais portugueses ligados, de forma mais ou menos tangencial, às redes do CCF, destacam-se Jorge de Sena, exilado no Brasil e nos Estados Unidos, que participou em conferências do CCF na década de 1960 e defendia uma terceira via anticomunista e liberal; Vergílio Ferreira, que manteve contactos com círculos intelectuais em Paris onde a “liberdade criativa” era tema central; e Eduardo Lourenço, colaborador de publicações como Preuves, embora mais tarde tenha criticado o imperialismo cultural norte-americano. A influência do CCF também se fez sentir através de eventos internacionais, como a conferência de Berlim de 1950, para a qual José Régio foi convidado, embora tenha recusado alegando motivos pessoais. Nos anos 1960, encontros em Paris reuniram intelectuais portugueses exilados, como Hélder Macedo, que debateram temas como cultura e totalitarismo em fóruns financiados pelo CCF, promovendo uma visão liberal e pró-Ocidente.

Mesmo após a dissolução oficial do CCF, em 1967, as suas redes de influência cultural persistiram no período pós-25 de Abril, utilizando outros canais institucionais. A Fundação Ford financiou a Editora Moraes, responsável pela publicação de autores liberais, enquanto a Fundação Gulbenkian patrocinou bolsas de estudo para jovens intelectuais portugueses nos Estados Unidos. Durante a década de 1980, o Instituto Americano em Portugal promoveu cursos de democracia liberal e valores ocidentais, reforçando este soft power cultural.

Contudo, a influência do CCF encontrou barreiras significativas. A PIDE controlava os contactos com estrangeiros, e muitos intelectuais recusaram colaborar por medo, nacionalismo ou desconfiança. Além disso, a organização falhou em conquistar setores da esquerda não comunista, como os socialistas próximos de Mário Soares, que viam os Estados Unidos como um agente de interesses estratégicos alheios a Portugal. No conjunto, esta atuação cultural não se limitou à circulação de ideias: foi parte de uma estratégia deliberada de soft power destinada a moldar a elite intelectual portuguesa com valores liberais e anticomunistas. Apesar de limitada em alguns setores, essa influência seria replicada em outros contextos lusófonos, como o Brasil e Angola, em plena Guerra Fria e sob regimes autoritários.

A influência do Congress for Cultural Freedom no Brasil

Durante as décadas de 1950 e 1960, o Brasil tornou-se um campo de batalha ideológico no contexto da Guerra Fria. O Partido Comunista Brasileiro (PCB) tinha forte presença em sindicatos, círculos culturais e meios intelectuais, enquanto os Estados Unidos promoviam políticas anticomunistas através de iniciativas como a Aliança para o Progresso (1961) e do apoio a grupos civis e militares alinhados com a sua estratégia hemisférica. Após o golpe de 1964, que instaurou a ditadura militar (1964–1985), a orientação anticomunista do regime coincidiu em parte com os interesses norte-americanos, mas as Forças Armadas desconfiavam do liberalismo cultural promovido por instituições como o Congress for Cultural Freedom (CCF), considerando-o demasiado “aberto” ou “cosmopolita”.

As estratégias do CCF no Brasil incluíram o financiamento indireto de intelectuais e publicações. A revista Cadernos Brasileiros (1959–1970),

dirigida por Álvaro Lins, recebeu verbas através da Fundação Ford, publicando autores liberais e críticos do marxismo, como Otto Maria Carpeaux. Já a revista Tempo Brasileiro (1962–),

embora não estivesse sob o controlo do CCF, partilhava uma agenda antitotalitária. Nela colaborou, por exemplo, Ferreira Gullar, que na fase inicial da sua carreira criticou tanto o PCB como o golpe militar de 1964, antes de se aproximar do marxismo.

No plano internacional, o CCF organizou conferências e intercâmbios intelectuais, trazendo ao Brasil figuras como Raymond Aron (1962) e Isaiah Berlin (1966), para debater conceitos como “liberdade intelectual” no Rio de Janeiro e em São Paulo, procurando deslegitimar o marxismo entre as elites culturais e políticas. Bolsas de estudo foram também concedidas a intelectuais brasileiros, entre os quais se destacou Roberto Campos, futuro ministro do presidente Castelo Branco.

No domínio das artes e da edição, a influência do CCF manifestou-se no apoio indireto a editoras como a Civilização Brasileira, que publicou obras de autores liberais e antitotalitários, incluindo O Deus que falhou, de Arthur Koestler. Nas artes plásticas, o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) beneficiou de exposições de arte abstrata organizadas em parceria com o MoMA, instituição norte-americana com ligações a redes culturais apoiadas pela CIA.

Apesar destas iniciativas, a relação com o regime militar nem sempre foi pacífica. O CCF promovia uma ideia de liberalismo cultural, enquanto os militares tendiam para um nacionalismo autoritário e desconfiavam de intelectuais demasiado críticos. Um exemplo notório foi a Universidade de Brasília (UnB), fundada por figuras como Darcy Ribeiro, que foi alvo de desconfiança e perseguição após 1964. Com o endurecimento do regime e a decretação do Ato Institucional nº 5 (AI-5) em dezembro de 1968 — que suspendeu direitos constitucionais, institucionalizou a censura prévia e ampliou a repressão política —, escritores como Carlos Heitor Cony, próximos de redes liberais e críticos tanto do comunismo como da ditadura, passaram a sofrer censura e perseguições.

O CCF tentou ainda conquistar a esquerda não comunista, incluindo socialistas democráticos como Celso Furtado, mas os resultados foram limitados. Uma exceção parcial foi Sérgio Buarque de Holanda, autor de Raízes do Brasil, que participou em alguns eventos ligados ao CCF, mantendo, contudo, uma postura crítica e independente.

Após o escândalo que revelou, em 1967, os vínculos financeiros do CCF à CIA, a organização foi desmantelada. Porém, o seu legado persistiu nos anos 1970 e 1980 através do apoio contínuo de instituições como a Fundação Ford, que financiou centros de pesquisa como o CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), e de editoras como Paz e Terra, que publicaram autores críticos da ditadura, mas distantes do marxismo ortodoxo. Intelectuais como José Guilherme Merquior e Otto Maria Carpeaux continuaram a difundir uma visão liberal e antitotalitária, alinhada com a herança cultural do CCF. Ao mesmo tempo, casos como o da peça Liberdade, Liberdade (1965), de Millôr Fernandes, mostram a ambiguidade do período: inicialmente tolerada por ser anticomu­nista, a obra acabou por ser censurada após 1968, por criticar também os militares.

A presença do Congress for Cultural Freedom em Angola

Entre 1961 e 1974, Angola foi palco de um duplo conflito: por um lado, a Guerra Colonial travada por Portugal contra os movimentos de libertação — MPLA, FNLA e, mais tarde, a UNITA — e, por outro, um conflito indireto entre os blocos capitalista e socialista. O MPLA, com orientação marxista-leninista, contou com apoio soviético e cubano, enquanto os EUA procuraram promover forças “moderadas”, como a FNLA de Holden Roberto, e, posteriormente, Jonas Savimbi (UNITA). O Congress for Cultural Freedom (CCF), alinhado com a estratégia ocidental, procurou enfraquecer a influência cultural e ideológica do MPLA e promover uma alternativa liberal ou anticomunista, sobretudo junto da opinião pública internacional.

As atividades do CCF em Angola foram sempre indiretas e limitadas, devido ao rígido controlo colonial português e à ausência de um espaço público livre. Em Lisboa, o CCF apoiou ou colaborou com círculos intelectuais anticolonialistas não marxistas, como alguns colaboradores da Seara Nova, que criticavam simultaneamente o autoritarismo do Estado Novo e o “totalitarismo soviético”. O poeta angolano Mário António Fernandes de Oliveira, radicado em Portugal, participou em encontros culturais internacionais próximos do CCF - embora sem aderir explicitamente ao CCF - defendendo uma posição de “terceira via” para o futuro político de Angola. Através da África do Sul, o CCF manteve contactos com instituições como o Institute of Race Relations, em Joanesburgo, que publicava estudos anticomunistas sobre os movimentos de libertação angolanos. Há indícios de que, nos anos 1960, fundos canalizados via Farfield Foundation foram usados para financiar traduções e a circulação de literatura anticomunista na África Austral.

A guerra psicológica e a contrainformação também foram áreas de atuação indireta. A Rádio Ecclésia, emissora católica de Luanda, difundia mensagens anticomunistas e recebeu financiamento da Fundação Adenauer (ligada à CDU alemã), parceira do CCF. O jornal católico O Apostolado publicou artigos de figuras como Uanhenga Xitu, que, embora defensor da independência, mantinha uma posição crítica face ao marxismo-leninismo.

Os líderes considerados “moderados” do nacionalismo angolano estiveram também sob a atenção do Congress for Cultural Freedom (CCF) e de outras redes ocidentais. Holden Roberto, líder da FNLA, cunhado de Mobutu Sese Seko (Zaire), beneficiou do apoio dos Estados Unidos e participou em conferências internacionais patrocinadas por entidades ligadas ao CCF, como a Conferência de Copenhaga, em 1966. Jonas Savimbi, fundador da UNITA em 1966, foi inicialmente visto como uma alternativa “democrática” ao MPLA. Em 1960, Savimbi refugiou-se na Suíça, onde se licenciou em Ciências Políticas e Jurídicas pela Universidade de Lausanne, cinco anos depois. Ao longo da década de 1980, a UNITA continuou a receber apoio dos Estados Unidos e do regime do apartheid na África do Sul, sobretudo na sua luta contra o MPLA, que contava com o apoio de Cuba e da União Soviética.

No plano cultural, houve tentativas de distribuir obras de referência do anticomunismo intelectual, como The God That Failed, de Arthur Koestler, distribuído pelo Centro de Informação e Turismo de Angola (órgão colonial com ligações à PIDE). Bolsas de estudo oferecidas pela Fundação Ford e outras entidades norte-americanas foram concedidas a alguns intelectuais angolanos com perfil anticomunista ou liberal, permitindo-lhes estudar em universidades dos EUA e da Europa Ocidental.

Apesar destas iniciativas, a influência do CCF em Angola foi limitada. O MPLA, apoiado por uma intensa rede internacional ligada à URSS e a países africanos recém-independentes, conseguiu dominar a narrativa cultural e política entre a intelectualidade angolana. A censura e a repressão do regime português também restringiram a presença aberta de iniciativas culturais estrangeiras, reduzindo o alcance da propaganda liberal e anticomunista. Após a independência, em 1975, a FNLA e a UNITA não conseguiram rivalizar com o MPLA no plano cultural, embora tenham recebido apoio militar e logístico dos EUA e da África do Sul.

A Igreja Católica desempenhou um papel ambíguo na Angola colonial, oscilando entre setores conservadores próximos ao regime e correntes progressistas ligadas à causa da independência. Um dos casos mais emblemáticos foi o do padre Joaquim Pinto de Andrade, irmão de Mário Pinto de Andrade — cofundador do MPLA e intelectual marxista. Joaquim Pinto de Andrade foi preso pela PIDE em 1960 por apoiar a luta anticolonial, tornando-se um símbolo da ala progressista da Igreja. Existem indícios de que o Congress for Cultural Freedom (CCF) tentou cooptá-lo, através de contactos em Roma e Lisboa, para moderar o seu discurso, mas sem sucesso.

A hierarquia católica oficial, representada por figuras como o arcebispo de Luanda, Dom Manuel Nunes Gabriel, tendia a alinhar-se com o regime português, ainda que criticasse práticas como o apartheid sul-africano. Em contrapartida, missionários progressistas, como o padre António Fernandes (associado às Comunidades Eclesiais de Base), apoiavam de forma clandestina o MPLA e outras iniciativas de resistência. O CCF via estes setores como alvos a neutralizar, promovendo seminários e encontros anticomunistas em Roma e Lisboa para reforçar a ala conservadora da Igreja. Documentos da PIDE (hoje disponíveis no Arquivo Nacional da Torre do Tombo) evidenciam a vigilância sobre estes padres, enquanto relatórios da CIA de 1971 sugerem que o CCF terá contribuído com fundos para a Rádio Ecclésia, com o intuito de contrabalançar a influência da Rádio MPLA, emitida a partir do Congo.

A iniciativa do CCF, contudo, revelou-se pouco eficaz: a maioria dos intelectuais angolanos — como Agostinho Neto e Pepetela — via o marxismo como uma ferramenta de emancipação, e o realismo socialista tornou-se a corrente dominante na literatura angolana.

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