As seitas à descoberta de Portugal
Perry Mason
(1957-1966) – Sue Randall
Uma
seita exige ao Estado português três milhões de dólares de indemnização pelos
prejuízos causados ao iate Apollo, assaltado por populares
Foi no Funchal, durante o
Processo Revolucionário em Curso (PREC)
[em sentido lato].
O cônsul da Bélgica no Funchal acabou o último rolo de Super
8 e foi para casa jantar, descansado. Tinha cumprido a sua missão. As atividades
da tripulação do iate «Apollo» estavam metodicamente anotadas e filmadas.
Visitas, carregamentos de papel, etc. O barco interessava-o. Atrás dos seus
proprietários oficiais — a Cindusta – Consultores Industriais e a Operation
& Transport Corporation Ltd (registada no Panamá no dia 1 de janeiro de 1968)
— escondia-se uma seita religiosa das mais esquisitas: a «Igreja de
Cientologia».
3 de outubro de 1974.
Diário de Lisboa, segunda-feira, 7 de outubro de 1974
O «Apollo» é assaltado durante a noite por um bando de
populares exaltados que acusam a tripulação de trabalhar para a CIA. Os
prejuízos elevam-se — segundo os jornais da época — a 115 mil contos. Com a
subida progressiva do dólar e a morosidade do processo, a bagatela inicial
subiu já para cerca de meio milhão de contos.
Dez anos depois do incidente, a Auditoria Administrativa de
Lisboa abriu o processo e deverá decidir em meados de maio se houve de facto
incúria por parte das autoridades portuguesas e tão elevados danos materiais.
A história da Cientologia começou muitos anos antes. Em
1950, o «profeta», Ron Hubbard, abre uma clínica de «Dianética» em New Jersey,
nos Estados Unidos, para «libertar as pessoas de sentimentos, sensações e
emoções indesejadas.»
O negócio dá bons lucros, mas também levanta algumas dúvidas
às autoridades do Estado de New Jersey e à Associação Médica Americana.
É nessa altura que Hubbard começa a andar com uma caixa de
sapatos cheia de notas, para o caso de se ver obrigado a partir para horizontes
mais tranquilos.
O «profeta» Hubbard cria em 1954 a «Igreja de Cientologia».
A sua filosofia — considerada uma amálgama de ficção científica e de
psicanálise de meia tigela — resume-se a um lacónico «saber como saber».
— Também eu quis saber, mas afinal aquilo é uma ciganada!
Querem-nos é vender pechisbeque por ouro… — conta Rui S., 37 anos, criativo
plástico numa multinacional, em Lisboa.
Foi abordado, no Largo do Chiado, por uma rapariga que lhe
pediu para «responder a duas ou três perguntas» de um inquérito sobre
personalidade humana.
— A princípio, não
sabia que era uma seita religiosa; pensava tratar-se de mais uma daquelas
sondagens chatas…
Tratava-se, afinal, de um contacto da «Igreja de
Cientologia», desta vez sob o nome de «Instituto de Dianética de Lisboa», uma
das muitas denominações que a organização de Hubbard tem vindo a adotar para
esconder a sua verdadeira identidade nos 25 países onde está a atuar. Rui S.
teve que comprar livros da seita no valor de algumas dezenas de contos para
poder ver-se livre dela.
Um outro processo bastante utilizado pela Cientologia é o
anúncio discreto na imprensa. Aí se propõe «grande futuro» e melhoria de
conhecimentos.
Foi através de um desses anúncios (publicado no Diário de
Notícias) que cheguei à fala com os cientologistas, na Travessa da
Trindade, em Lisboa, a sede da organização.
Uma sala nua, paredes decrépitas e muita sujidade. Luxuosos
cartazes (em inglês) propõem a felicidade a toda a gente, amanhã. E um teste
gratuito, para já.
São 200 perguntas sobre a vida pessoal, os gostos, os
temores, as ambições e as opiniões políticas de cada um de nós. Uma maneira
hábil de a seita se informar sobre os eventuais adeptos e assim poder preparar
o melhor ângulo de ataque.
Os métodos de marketing são subtilmente aplicados:
«Custa-lhe aceitar um fracasso?; acha que está a ser gasto muito dinheiro na
Segurança Social?; acha fácil ser imparcial?; se invadisse um país,
simpatizaria com os objetores de consciência desse país?; a sua voz é bastante
variável em vez de calma?»
São 10:30 da manhã quando acabo de responder a 192 perguntas
do questionário. Uma jovem, visivelmente ainda mal desperta, tira-me as folhas
das mãos e manda analisá-las. Minutos depois, chama-me ao seu gabinete e
comunica-me os resultados.
Sou um tipo «porreiro, estável, calmo, certo, ativo,
agressivo, responsável causativo, crítico, discordante e retraído.» Em suma,
«um elemento aceitável sob condições perfeitas, mas…»
— Como é que cá vieste parar?
— Li o anúncio do Diário de Notícias e, como ando à
procura de emprego, dei uma saltada até cá…
— O teu teste até nem está mau…. Vejo que não precisas de
tratamento. Tens disponibilidade?
— Não tenho nada para fazer o dia inteiro…
— Então, ofereço-te um emprego! Podes ser o nosso ‘PPO’, é
uma espécie de Diretor do Pessoal. És pago à semana…
— E quanto é que vou ganhar?
— Isso, não sei. Mas o dinheiro também não é importante. O
ambiente aqui é muito bom. Aqui, trabalha-se sete dias por semana. De segunda a
sábado, trabalhas 11 horas por dia, mais duas horas e meia de estudos. Ao
domingo só trabalhas nove horas.
— Mas quanto é que vou ganhar?
— Isso depende da tua produtividade… que é calculada segundo
uns métodos complicados. O contrato é verbal.
— …
Em função dos resultados do teste a Cientologia propõe um
emprego ou mais frequentemente uma «cura». O tratamento é um sistema
terapêutico (com implicações de natureza cósmica e uma justificação mística)
intitulado «Dianética». Um método especulativo que pretende diagnosticar
doenças mentais e outras, atribuídas a causas mais psicológicas do que
bacteriológicas ou biológicas. Hubbard é o primeiro a tentar justificar a
qualidade da terapêutica: «Estava cego devido a lesões no nervo ótico, coxo por
causa de ferimentos na anca e nas costas e a minha caderneta militar indicava
que sofria de incapacidade física permanente.» — conta o «profeta». Apesar de
abandonado por toda a gente, conseguiu «recuperar em menos de dois anos».
O homem terá sido, deste modo, o primeiro miraculado de uma técnica que ele próprio descobriu.
Pseudo-teste de personalidade: a Cientologia propõe um
emprego ou mais frequentemente uma «cura»
A Cientologia define-se como um «guia espiritual e religioso
destinado a tornar as pessoas mais conscientes de si mesmas enquanto seres
espirituais.» «Não pretende tratar nem estabelecer diagnósticos para todas as
doenças do corpo e da mente, nem se dedica ao ensino ou à prática das artes ou
das ciências da Medicina.» Assim, o credo da «Igreja» afirma: «Nós acreditamos
que o estudo da mente e a cura de doenças de origem mental não deveriam estar
separadas da religião, nem ser toleradas em organizações não-religiosas.»
Os cursos (cujos preços variam entre 1000 e 132 000$00) têm como finalidade fazer os «doentes» ultrapassar escalões de uma «clarificação» crescente, desembaraçando-os progressivamente dos seus «engrams» (imagens mentais relativas a experiências de dor física; gravação na mente reativa — o inconsciente — de um acontecimento do passado e até mesmo sensações pré-natais sentidas pelo feto…). Durante as sessões de «clarificação» — também chamadas audições — o auditor ajuda o paciente a descobrir e a suprimir os limites espirituais por ele fixados através de perguntas, de exercícios e de um aparelho que é apresentado como um protótipo denominado «E-METRO», uma maquineta do tempo da avozinha que serve apenas para medir reações fisiológicas (Wheatstone machine). As agulhas da máquina movem-se estupidamente da esquerda para a direita pela módica quantia de 31 000$00, a pagar antecipadamente à «Dianética», a tal associação sem fins lucrativos… A qualidade do tratamento é tão boa ou tão má que o ministro britânico da Saúde qualificou, em 1968, os métodos utilizados durante essas audições como «contrários à Sociedade, constituindo um sério risco para todos aqueles que a eles se submetem.»
Os cientologistas só estão oficialmente em Portugal desde 1980, mas já nos frequentam há 16 anos. O Diário de Notícias (de 16 de maio de 1969) alertava para o «mistério» de um barco de nome «Apollo» que navegava nas nossas águas em busca de «milhares de espíritos perturbados à procura de um significado para a Existência.»
Diário de Lisboa, sexta-feira, 16 de maio de 1969
Dois anos mais tarde, o mesmo matutino volta a anunciar a presença do iate em Portugal, dessa vez com uma quantidade de gente a bordo: 380 pessoas. E como não há duas sem três, o «mistério» repete-se em março de 1974, data em que o «Apollo» leva a vários pontos do país «um concerto de jazz para esconder um Ovo de Colombo.»
É precisamente nessa altura que que se dá o ataque do
Funchal, a pretexto de a tripulação pertencer à CIA. Ora, tal acusação não
deixa de ser curiosa. Até aí, Hubbard e «companhia» sempre tinham sido
associados ao KGB, como o comprovam relatórios de alguns serviços secretos
ocidentais. O próprio filho do «profeta» garante que Hubbard «traiu os Estados
Unidos por dinheiro.» Segundo Hubbard Junior «o KGB conseguiu, com a sua ajuda
(a do pai) arranjar em plena Guerra Fria os planos de um míssil termo-orientado
ocidental. Os soviéticos obtiveram a informação através da audição de um
engenheiro membro da Igreja de Cientologia.»
O KGB treinou ainda agentes da HVA (Administração Central das Informações), a espionagem leste-alemã, supostamente membros da seita, para se infiltrarem, via Dinamarca, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos.
O iate «Apollo» (proibido de entrar, por exemplo, nas águas
gregas) é apenas a parte visível do «iceberg» Cientologia. As águas turvas são,
de resto, as preferidas da seita
«A Sétima Vaga já cá está!» — assegura-me Victor Estrela, Diretor
Executivo da seita, muito aborrecido porque me identifica como jornalista,
depois de me ter lá visto como simples candidato a um emprego. Jura que
«pertencemos todos a uma Geração que pela sétima vez consecutiva ocupa a Terra»
antes de insinuar algumas ameaças e de voltar aos seus afazeres. Agradeço a
preocupação, sorrio a um jovem apático de negro vestido, que se encontra por lá
e saio.
Resta saber como se articulam todos estes conceitos
místico-filosóficos com a natureza, o objetivo e o funcionamento real da seita.
Uma coisa é certa: a Cientologia foi e continua a ser associada à burla, à
lavagem do cérebro e à rutura com todos os laços afetivos.
O Departamento sueco da Saúde acusou em 1975 a seita de ter
exercido «pressões intoleráveis» e «chantagem económica» sobre os seus membros.
Os cientologistas fizeram alguns adeptos assinar reconhecimentos de dívidas
(fictícias) para com a «Igreja». Mais recentemente, em fevereiro de 1978, a
Justiça francesa julgou quatro dirigentes da organização por burla. Ron
Hubbard, cujo paradeiro é, hoje, desconhecido, foi um dos condenados. O
tribunal francês considerou a «Igreja de Cientologia» como uma associação
«dissimulada em empresa comercial bem gerida e em pleno desenvolvimento (…) que
pratica pseudo-testes de personalidade efetuados por pessoal sem qualificação e
realiza por este meio uma pressão intelectual e moral sobre as pessoas
esperançadas num melhor equilíbrio pessoal, num maior sucesso profissional (…)
e que obteve de numerosas pessoas a entrega de importantes quantias de dinheiro,
extorquindo assim toda ou parte da fortuna alheia.»
A Cientologia muda logo a seguir o nome para «Igreja da Nova
Compreensão» e continua a atuar em França. O Relatório Vivien, elaborado pelos
serviços secretos franceses e divulgado há poucos dias, considera a Cientologia
como uma das nove mais perigosas seitas presentes em França (num total de 120).
Uma grande parte das organizações filosófico-religiosas
internacionais (desde «Moon» aos «Meninos de Deus», passando pelos neonazis da
«Nova Acrópole») estão em Portugal, mas ainda não há qualquer controlo das suas
atividades. E mais: «Ainda não temos nenhuma lista das associações
filosófico-religiosas existentes em Portugal porque o fenómeno ainda não é
preocupante» — disse à GR um alto funcionário do MAI, aparentemente
surpreendido com a formulação de tal pergunta…
Fonte: PÁGINA UM, 4 de julho de 2024
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