Cheiro a ‘meias velhas’ manda tripulações para o hospital
Perry Mason (1957-1966)
Suspeita-se
que 1500 voos europeus são afetados, anualmente, pelos fumes, ou maus cheiros,
que tem levado tripulações e passageiros aos hospitais, bem como aviões
desviados da sua rota. Há quem diga que alguns pilotos já ficaram incapacitados
de renovar a licença de trabalho
É um problema da indústria e não das companhias», dizem, com
frequência, os organismos oficiais ligados à aviação. Como se a conversa não
versasse sobre vidas humanas que adoecem, cada vez mais, devido aos maus cheiros (fumes) detetados no interior de alguns
aviões. Praticamente ninguém quer falar no assunto, pois o melindre
da questão não é para menos. Estamos a falar de um problema que existe, pelo
menos, desde os anos 2000, e ninguém consegue chegar a uma conclusão. «O
Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes
Ferroviários (GPIAAF) tem conhecimento de alegados casos reportados por
testemunhos públicos e das associações representativas do setor. Este Gabinete
não faz o seguimento dessas situações, as quais se enquadram no âmbito da
higiene, saúde e segurança no trabalho, da competência dos correspondentes
departamentos das empresas, incluindo medicina no trabalho e, eventualmente, da
Autoridade para as Condições do Trabalho», explica a entidade ao Nascer do
SOL.
Questionada sobre o número de casos conhecidos, a GPIAAF,
esclarece: «A existência de odores estranhos nas cabinas dos aviões pode ter
diversas origens e é uma situação que não é invulgar. Os dados existentes
indicam que na grande maioria dos casos apenas causam situações de desconforto
ou incómodo temporário aos tripulantes e passageiros. O repositório central
europeu, referente ao universo dos países UE, tem
registado em torno de 1500 ocorrências deste tipo anualmente».
Mas quais as razões para tripulantes e passageiros terem de
ir ao hospital depois de determinados voos? «O tema já foi objeto de vários
estudos pela indústria e por outros organismos de investigação de segurança com
análises e conclusões abrangentes», acrescenta a GPIAAF, dando o exemplo de um
estudo do Departamento Federal Alemão de Investigação de Acidentes com
Aeronaves (BFU). «Nos últimos anos, o Departamento Federal Alemão de
Investigação de Acidentes Aeronáuticos (BFU) tem recebido um número crescente
de relatos dos chamados eventos de fumo. Estes tipos de eventos incluem cheiro,
fumo ou vapor dentro da aeronave e problemas de saúde para os ocupantes de
aeronaves de transporte. Além disso, este tema é cada vez mais discutido entre
tripulantes de voo, sindicatos, meios de comunicação social e comités
políticos. O estudo considerou 845 acidentes, incidentes graves e incidentes
reportados à BFU entre 2006 e 2013».
Como se tem dito, o problema não é de agora, embora em
Portugal tenham surgido em maior número a partir de 2019. Voltemos ao estudo da
BFU. «Uma conjunção com o ar da cabine pôde ser determinada em 663 relatórios.
Em 180 relatórios, foram descritos problemas de saúde, embora não tenha sido
possível determinar uma conjunção com a qualidade do ar da cabine. Em 460 dos
663 eventos de fumo reportados, houve desenvolvimento de odor e, em 188 casos,
foi reportado desenvolvimento de fumo. Em 15 casos, não houve cheiro nem fumo,
mas houve certos problemas de saúde que podem estar associados a um evento de
fumo».
Parece ser evidente que a segurança dos voos não está em
causa. «A análise dos dados para este estudo mostrou que os critérios para um
incidente grave foram cumpridos por alguns dos eventos de fumo, porque a
tripulação decidiu usar as suas máscaras de oxigénio ou um piloto ficou
parcialmente incapacitado. Em muito poucos casos, a margem de segurança foi
reduzida ao ponto de existir uma elevada probabilidade de acidente em termos da
definição legal».
Mas o mesmo já não se pode dizer da saúde dos tripulantes e
dos passageiros, segundo o mesmo estudo. «Houve indícios claros de problemas de
saúde em termos de saúde ocupacional para a tripulação de voo e de cabine. Os
relatórios individuais indicaram problemas de saúde para os passageiros. A BFU
considera que, em comparação com todos os relatórios, um número significativo
afetou apenas o conforto dos passageiros. Trata-se de relatórios que descrevem,
por exemplo, odores desagradáveis, mas inofensivos.
Em 10 de todos os eventos de fumo reportados à BFU, o
denunciante relatou problemas de saúde a longo prazo posteriormente. Todos
estes incidentes foram eventos de fumo nos quais foram relatados cheiro a óleo
ou ‘cheiro a meias velhas’. Em oito destes 10 casos, a BFU foi informada de que
o denunciante está a receber tratamento médico (…) A BFU considera que os
princípios da toxicologia clínica devem ser aplicados para esclarecer um
possível efeito a longo prazo dos eventos com fumo».
A BFU conclui que «os eventos de fumo considerados neste estudo mostraram
que não houve uma redução significativa da segurança do voo. O estudo demonstra
que os eventos de fumo ocorrem e podem resultar em problemas de saúde. Com os
métodos de investigação de acidentes aéreos, BFU não consegue avaliar os
possíveis efeitos a longo prazo dos eventos de fumo».
Tripulantes e passageiros no hospital
Avancemos no tempo e vejamos o que se passou em março, a
título de exemplo, segundo o boletim de divulgação trimestral da GPIAAF. «No
dia 11 de março de 2025 às 15:46, uma aeronave Airbus A321neo, com registo
CS-TJQ, descolou para um voo comercial do Aeroporto de Lisboa (LPPT) com
destino ao Aeroporto de Londres Heathrow (EGLL).
Pelas 16:20, já em espaço aéreo espanhol, o cockpit foi
informado pelo chefe de cabine que um dos membros da tripulação a desempenhar
funções na parte de trás da aeronave, estava com náuseas.
Sem qualquer indicação ou indício de fumo ou cheiros no
cockpit, a tripulação decidiu manter o nível de FL360 e aguardar 5 minutos para
avaliar a situação.
Com uma informação prévia de cheiros (fumes) em voos
anteriores na aeronave, e dado que outros membros da tripulação de cabine
confirmaram sintomas semelhantes, a tripulação de voo decidiu divergir para o
Aeroporto do Porto (LPPR), cumprindo com os procedimentos QRH aplicáveis de
SMOKE /FUMES /AVNCS SMOKE, incluindo o uso de máscaras de oxigénio.
Durante a descida e já em contacto com o Porto, dado que
alguns passageiros referiram estar com alguns sintomas, foi decidido declarar
emergência e solicitar assistência médica à chegada, prevenindo possíveis
atrasos na prestação desses serviços.
A aterragem ocorreu com normalidade com o desembarque dos
passageiros sem outros eventos. Os 7 tripulantes
e 2 passageiros foram transportados para o hospital para uma avaliação médica.
A informação prévia da tripulação de voo sobre problemas
anteriores com cheiros na aeronave do evento era referente ao mesmo dia nos
dois voos anteriores. A aeronave realizou um voo entre Lisboa e o Funchal,
tendo sido reportada a presença de cheiros estranhos (dirty socks) na zona
traseira da aeronave.
Em sequência, os serviços de manutenção no Funchal
realizaram uma inspeção aos dois motores e APU sem qualquer anomalia reportada.
No voo seguinte do Funchal para Lisboa, foram reportados cheiros estranhos à
descolagem, contudo terão desaparecido logo de seguida».
Chamem as universidades
O comandante José Correia Guedes, em declarações ao i,
afirmara-se muito preocupado com o fenómeno. «O problema existe e era muito
importante que uma universidade portuguesa,
principalmente aquelas que têm cursos de engenharia aeronáutica, que
já são umas seis ou sete, pegassem no assunto, investigassem e chegassem a uma
conclusão, prestariam um grande serviço, não só a Portugal, mas a todos os
passageiros e tripulantes por esse mundo fora».
O comandante reformado dá mais pormenores. «Quase todas as
semanas há problemas com aviões por esse mundo fora. Tenho tentado ajudar
porque há colegas meus que estão com problemas graves de saúde, alegadamente
por exposição aos fumes, só que, a nível oficial, do ponto de vista da
Medicina, quer os serviços médicos da TAP quer a Organização da Aviação Civil
Internacional (ICAO), ainda não chegaram a uma conclusão definitiva, uma
relação causa e efeito, em relação a esses fumes, que estejam a provocar doenças
graves. Os fumes provocam frequentemente
irritação nos olhos e na garganta, que são sintomas passageiros, na maior parte
dos casos. O problema mais sério coloca-se em relação aos tripulantes, porque
estão expostos com mais frequência a esse tipo de episódios. E há casos de
tripulantes que perderam a licença de voo, alegadamente por exposição a esse
tipo de situações».
Ricardo Penarroias, presidente do Sindicato Nacional do
Pessoal de Voo da Aviação Civil, «é um assunto da indústria. As pessoas ficam
alarmadas, atentas sobre o tema, sobre a situação. Quem tem tido ocorrências,
tem tido sequelas de médio e longo prazo, temos consciência disso, não é um
tema que é desvalorizado, mas que tem de ser tratado com pinças. Não podemos
desvalorizar, não podemos dizer que ele não existe, mas a solução tem de ser
bastante abrangente porque tem a ver com a indústria, não é uma exclusividade
de uma companhia aérea».
Já a TAP, que ‘usa’ aviões da Airbus,
a companhia, supostamente, com mais problemas, esclarece, através de
fonte oficial, que «trata-se de uma questão global e que não diz respeito
exclusivo à TAP. Têm sido desenvolvidos (e continuam a ser) vários estudos a
nível internacional sobre este tema, liderados por entidades credíveis e independentes.
É uma matéria que seguimos naturalmente de perto, embora nenhum dos estudos
mais independentes, amplos e credíveis tenha estabelecido nexo de causalidade
entre estes episódios de odores e situações que afetem a saúde de tripulantes
de forma persistente ou crónica». A companhia aérea termina dizendo que «cumpre
as melhores práticas internacionais nesta matéria, acompanha todos os casos
reportados, prestando toda a informação e apoio aos trabalhadores, seus
representantes, autoridades aeronáuticas e de saúde, fabricantes, organizações
e associações internacionais do setor». Para finalizar, diga-se que vários
sindicatos se remeteram ao silêncio, á semelhança de alguns organismos
internacionais. O tema é demasiado sensível, mas a saúde de tripulantes e passageiros
também o é…
Fonte: Sol, 28 de julho de 2025
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