Num tempo de economias em colapso e reações populistas, digo-vos o que precisamos — Marxismo
O.P.J.
Pacific Sud (2019) - Marielle Karabeu
Para
nos libertarmos dos nossos senhores tecno-feudais, temos de pensar como Karl
Marx. As corporações querem esvaziar-nos os cérebros, mas podemos retomar o
controlo
Uma jovem com quem falei recentemente comentou que o que
mais a deixava furiosa não era tanto a existência do mal puro, mas sim o facto
de haver pessoas ou instituições com capacidade para fazer o bem que acabam, em
vez disso, por prejudicar a humanidade. A sua reflexão fez-me lembrar Karl
Marx, cuja crítica ao capitalismo era precisamente essa — não tanto por ser
explorador, mas por nos desumanizar e alienar, apesar de ser uma força
progressista.
Os sistemas sociais que antecederam o capitalismo poderão
ter sido mais opressivos ou exploradores. No entanto, só sob o capitalismo os
seres humanos foram tão completamente alienados dos seus produtos e do seu
meio, tão separados do seu trabalho, tão
privados até de um mínimo de controlo sobre o que pensam e fazem. O
capitalismo, especialmente depois de entrar na sua fase tecno-feudal,
transformou-nos a todos numa versão de Caliban ou Shylock – mónadas num
arquipélago de eus isolados, cuja qualidade de vida é inversamente proporcional
à abundância de engenhocas produzidas pelas nossas máquinas modernas.
Esta semana, juntamente com outros políticos, escritores e
pensadores, participarei no festival Marxismo 2025, em Londres, e uma das
questões que mais me ocupa é a forma como os jovens de hoje sentem claramente
essa alienação que Marx identificou. Mas a reação contra os imigrantes e contra
a política identitária – para não falar da distorção algorítmica das suas vozes
– paralisa-os. É aqui que Marx pode regressar, com conselhos sobre como
ultrapassar essa paralisia – conselhos valiosos, sepultados sob as areias do
tempo.
Veja-se o argumento de que as minorias que vivem no Ocidente
devem assimilar-se para que não acabemos numa sociedade de estranhos. Aos 25
anos, Marx leu um livro de Otto Bauer,
um pensador que respeitava, que defendia a ideia de que, para se qualificarem
para a cidadania, os judeus alemães deveriam renunciar ao judaísmo.
Marx ficou furioso. Embora o jovem Marx não tivesse qualquer
simpatia pelo judaísmo — nem por qualquer religião —, a sua demolição
apaixonada do argumento de Bauer é um bálsamo para os olhos cansados: “Dá o
ponto de vista da emancipação política o direito de exigir ao judeu a abolição
do judaísmo, e ao homem a abolição da religião? (…) Tal como o Estado
evangeliza quando (…) adota uma atitude cristã face aos judeus, assim também o
judeu atua politicamente quando, embora judeu, exige direitos cívicos.”
O que Marx nos ensina aqui é o truque de combinar um
compromisso com a liberdade religiosa de judeus, muçulmanos, cristãos, etc.,
com uma rejeição total da presunção de que, numa sociedade de classes, o Estado
pode representar o interesse geral. Sim, os judeus, os muçulmanos, as pessoas
de confissões que possamos não partilhar — ou até nem sequer apreciar — devem
ser emancipadas de imediato. Sim, as mulheres, as pessoas negras e a comunidade
LGBTQ+ devem ter direitos iguais muito antes de qualquer revolução socialista
surgir no horizonte. Mas a liberdade exigirá muito mais do que isso.
Mudando para o tema dos trabalhadores imigrantes que
suprimem os salários dos trabalhadores locais — outro campo minado para os
jovens de hoje —, uma carta que Marx enviou em 1870 a dois associados em Nova
Iorque oferece pistas brilhantes sobre como lidar não só com os Nigel Farages
deste mundo, mas também com alguns elementos da esquerda que morderam o isco
anti-imigração.
Na sua carta, Marx reconhece plenamente que os patrões
americanos e ingleses exploravam propositadamente a mão-de-obra barata dos
imigrantes irlandeses, colocando-os contra os trabalhadores nativos e
enfraquecendo a solidariedade laboral. Mas, para Marx, era autodestrutivo que
os sindicatos se voltassem contra os imigrantes irlandeses e abraçassem
narrativas anti-imigração. Não, a solução nunca foi expulsar os trabalhadores
imigrantes, mas sim organizá-los. E se o problema está na fragilidade dos
sindicatos ou na austeridade fiscal, então a solução nunca poderá ser fazer dos
imigrantes bodes expiatórios.
Falando de sindicatos, Marx tem também excelentes conselhos
para lhes dar. Sim, é crucial aumentar os salários para reduzir a exploração
dos trabalhadores. Mas não nos deixemos enganar pela fantasia dos salários
justos. A única forma de tornar o local de trabalho verdadeiramente justo é abolir um sistema irracional baseado na separação rígida
entre os que trabalham, mas não possuem e a minoria ínfima que possui, mas não
trabalha.
Nas suas palavras: “Os sindicatos funcionam bem como centros
de resistência contra os abusos do capital. [Mas] falham, em geral, por se
limitarem a uma guerra de guerrilha contra os efeitos do sistema existente, em
vez de tentarem também transformá-lo.”
Mudar para quê? Para uma nova estrutura empresarial baseada
no princípio de um trabalhador–uma ação–um voto — uma agenda capaz de inspirar
verdadeiramente os jovens que anseiam por liberdade, tanto face ao estatismo
como face às corporações movidas apenas pelos lucros dos fundos de capital
privado ou por proprietários ausentes que nem sabem que detêm uma parte da
empresa onde esses jovens trabalham.
Por fim, a atualidade de Marx brilha intensamente quando
tentamos compreender o mundo tecno-feudal em que a big tech, juntamente
com a alta finança e os nossos Estados, nos aprisionou sorrateiramente. Para
perceber porque é que isto constitui uma forma de tecno-feudalismo — algo bem
pior do que o chamado capitalismo de vigilância — temos de pensar como Marx
pensaria sobre os nossos smartphones, tablets, etc. Vê-los como uma mutação do
capital — ou “capital em nuvem” — que modifica diretamente o nosso
comportamento. Compreender como avanços científicos estonteantes, redes
neuronais fantásticas e programas de inteligência artificial que desafiam a
imaginação criaram um mundo onde, enquanto a privatização e o capital privado
delapidam toda a riqueza física ao nosso redor, o
capital em nuvem se dedica a depenar os nossos cérebros.
Só através da lente de Marx conseguimos perceber
verdadeiramente isto: que, para possuirmos as nossas mentes individualmente,
temos de possuir coletivamente o capital em nuvem.
Yanis Varoufakis
Fonte. The Guardian, 3 de julho de 2025
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