O fim do privilégio exorbitante dos Estados Unidos
Jurassic
World Dominion (2022) - Isabella Sermon
Desde o
seu regresso ao cargo, o Presidente dos EUA, Donald Trump, tem vindo a destruir
sistematicamente a confiança dos mercados no dólar e na economia
norte-americana. Se, como parece provável, continuar a ignorar os seus alertas,
os Estados Unidos deverão preparar-se para uma crise do dólar e do mercado
obrigacionista antes das eleições intercalares do próximo ano
Quando era ministro das Finanças francês, na década de 1960,
o antigo presidente francês Valéry Giscard
d'Estaing queixou-se, numa frase
célebre, do "privilégio
exorbitante" que a posição do dólar como principal moeda de reserva
mundial conferia aos Estados Unidos. Isto significava,
essencialmente, que os EUA podiam contrair empréstimos a juros baixos, incorrer
em défices comerciais persistentemente elevados e imprimir dinheiro para
financiar os seus défices orçamentais. Nunca poderia imaginar que os EUA acabariam
por deixar escapar essas vantagens por entre os dedos.
Desde o seu regresso à Casa Branca em janeiro, o presidente
dos EUA, Donald Trump, tem vindo a destruir sistematicamente a confiança no
dólar, tanto nos mercados financeiros globais como entre governos e bancos
centrais. Para começar, Trump colocou as finanças públicas norte-americanas num
rumo ainda mais insustentável do que aquele em que já se encontravam antes de
assumir o cargo.
Quando iniciou o seu segundo mandato, o défice orçamental
dos EUA já tinha aumentado para 6,2% do PIB,
apesar do emprego quase total, enquanto a dívida pública rondava os 100% do
PIB. Mas a situação está prestes a agravar-se significativamente. Longe de
colocar ordem nas contas públicas, Trump e os seus aliados no Congresso
aprovaram o chamado “Big, Beautiful Bill” – um pacote fiscal e de despesa que,
segundo o Gabinete de Orçamento do Congresso (CBO), independente e apartidário,
acrescentará cerca de 3,4 biliões de dólares ao défice orçamental ao longo da
próxima década.
A dívida pública dos EUA, em proporção do PIB, está agora em
trajetória para ultrapassar, até 2030, os níveis registados no final da Segunda
Guerra Mundial – num contexto demográfico muito menos favorável do que então. Ao contrário do período pós-guerra, a economia
norte-americana atual não tem capacidade de crescer o suficiente para reduzir o
peso da dívida. Não admira, por isso, que as principais agências de
notação financeira, como a Moody’s, tenham retirado aos EUA a classificação de
crédito AAA.
Trump está ainda a minar a confiança no dólar através da sua
aparente indiferença em relação ao controlo da inflação. A inflação nos EUA
continua acima da meta de 2% fixada pela Reserva Federal e arrisca-se a subir
ainda mais, devido às tarifas agressivas sobre as importações estrangeiras, que
atingiram níveis inéditos nos últimos 100 anos. No entanto, Trump tem
pressionado a Fed para reduzir as taxas de juro em 1 a 2 pontos percentuais, e
deu a entender que pretende nomear um defensor de uma política monetária
expansionista para substituir o atual presidente da Fed, Jerome Powell, cujo
mandato termina em maio de 2026.
Para agravar ainda mais a situação, Trump lançou
dúvidas sobre o compromisso dos EUA em honrar plenamente a sua dívida. Versões preliminares do “Big, Beautiful
Bill” continham uma cláusula permitindo a aplicação de um “imposto de
retaliação” até 20% sobre ativos detidos por estrangeiros – incluindo
obrigações do Tesouro – oriundos de países cujas políticas fiscais sejam consideradas
“injustas” para os EUA. Além disso, assessores-chave de Trump sugeriram
obrigar os bancos centrais estrangeiros a converter os títulos do Tesouro dos
EUA que detêm em obrigações a 100 anos, sem pagamentos de juros,
como parte de um projeto denominado Acordo de
Mar-a-Lago.
Somando a isto o aparente desrespeito de Trump pelo Estado
de direito, os mercados têm cada vez menos razões para confiar nos EUA. É por
isso que o dólar desvalorizou mais de 10% desde o início de 2025 – o pior
desempenho do dólar no primeiro semestre de um ano desde 1973. Esta queda
torna-se ainda mais chocante tendo em conta o forte aumento das tarifas
comerciais e o alargamento do diferencial de taxas de juro de curto prazo em
relação a outras grandes economias – fatores que, em princípio, deveriam valorizar
o dólar.
Outro sinal do colapso da confiança dos mercados nos EUA é o
aumento superior a 25% no preço do ouro nos últimos seis meses. E a taxa de
juro das obrigações do Tesouro a dez anos – um indicador-chave – manteve-se
elevada, mesmo após a turbulência considerável nos mercados bolsistas que se
seguiu ao anúncio das tarifas do “Dia da Libertação” feito por Trump no início
de abril. Normalmente, este tipo de instabilidade acionaria uma corrida para a
segurança percebida do mercado obrigacionista dos EUA.
A mensagem não podia ser mais clara: os mercados estão
profundamente descontentes com o rumo da política económica da administração
Trump. O problema para Trump é que, ao contrário dos políticos, os mercados não
podem ser pressionados nem derrotados em eleições primárias. Se continuar a
ignorar os alertas dos investidores – como tudo indica –, os EUA devem
preparar-se para uma crise cambial e obrigacionista antes das eleições
intercalares do próximo ano. Os tempos em que o
mundo permitia que os Estados Unidos vivessem acima das suas possibilidades
estão rapidamente a chegar ao fim.
Desmond Lachman
Fonte: Project Syndicate, 7 de julho de 2025
Comentários
Enviar um comentário