Como Trump decidiu despedir uma funcionária desconhecida, dando origem a teorias da conspiração sobre dados governamentais
Perry Mason
(1957-1966) – Diana Millay
Furioso com o relatório sobre o estado do emprego em julho,
que sinalizava uma desaceleração significativa na economia, o presidente
norte-americano Donald Trump recordou-se de um dos seus ressentimentos mais
persistentes: a profissional de estatística responsável pela tabulação dos
números mensais que tinha sido nomeada pelo ex-presidente Joe Biden.
Ao contrário do presidente da Reserva Federal, Jerome
Powell, sobre quem Trump tem vindo a criticar há meses, o presidente dos EUA tem autoridade para demitir o chefe
do Gabinete de Estatísticas Laborais. Por isso, no início de agosto,
fez isso mesmo — uma decisão sem precedentes que desencadeou a mais recente
controvérsia na Casa Branca e uma reação em cadeia sobre a introdução de
política nos dados económicos do governo.
“Estava a pensar nisso esta manhã, antes de saírem os
números,” disse Trump aos jornalistas. “Pensei: ‘Quem é a pessoa que faz estes
números?’”
Essa pessoa, que Trump subitamente tornou conhecida do
público ao despedi-la publicamente, é Erika McEntarfer.
Enquanto alguns dos conselheiros económicos do presidente
procuravam apresentar explicações para o dececionante relatório de empregos de
julho — e para as revisões em baixa dos números de maio e junho, que indicavam
uma desaceleração na contratação — foi um argumento de Sergio Gor, chefe do pessoal presidencial e
principal responsável pela lealdade a Trump, que, segundo os
assessores, mais ressoou com o presidente norte-americano: Erika McEntarfer foi
nomeada por Biden.
Fontes familiarizadas com a decisão de afastar McEntarfer
disseram que o presidente já a tinha mencionado anteriormente, criticando o
facto de a pessoa à frente da agência que compila dados económicos tão cruciais
ter sido nomeada pelo seu antecessor.
Só isso já irritava Trump, disseram essas fontes. Mas até
sexta-feira, ele não acreditava ter um motivo para a demitir.
Isso mudou após o relatório de empregos ter sido conhecido,
quando Trump informou alguns dos seus principais conselheiros de que queria
despedir McEntarfer. Dois funcionários da Casa Branca disseram que, tanto
quanto sabiam, ninguém se opôs a essa decisão.
“Despedi-a,” disse Trump aos jornalistas. “E sabem que mais?
Fiz a coisa certa.”
Tentativa derradeira de desacreditar os factos
Com isso, nasceu
uma nova teoria da conspiração na Casa Branca, quando o presidente
afirmou, sem apresentar provas, que McEntarfer tinha “manipulado” o relatório
mensal de empregos.
McEntarfer, que não respondeu às questões da CNN, passou
décadas como profissional de estatística ao serviço do governo, trabalhando no
Gabinete dos Censos e em vários departamentos da administração pública, a
realizar inquéritos e a estudar dados laborais e económicos. Contudo, num
discurso proferido em janeiro no Clube Económico de Atlanta, falou sobre a
importância de produzir dados económicos em tempo útil.
“Tenho interesse na medição económica há muito tempo,”
referiu, na altura, Erika McEntarfer. “Mas, como todos os que viveram os
últimos cinco anos, desenvolvi uma apreciação mais profunda pela importância de
dados económicos atempados.”
A sua demissão foi o mais recente exemplo de Trump agir para
desacreditar factos que contrariavam a sua narrativa política, ou para afastar
aqueles responsáveis por os compilar. Quase esquecida no meio da controvérsia
ficou a discussão sobre o verdadeiro estado do mercado de trabalho dos EUA, que
agora emite sinais de alerta devido à incerteza provocada pelas tarifas
impostas por Trump.
A decisão de Trump de despedir Erika McEntarfer gerou
condenação imediata por parte de economistas de todas as correntes, que usaram
descrições como “prejudicial”, “autoritário” e “república das bananas” para
classificar a medida.
“Não sei se há qualquer fundamento para este despedimento,”
disse William Beach, nomeado por Trump durante o seu primeiro mandato para
liderar o Gabinete de Estatísticas Laborais (GEL). “E isso prejudica seriamente
o sistema estatístico. Minar a credibilidade do gabinete é muito grave.”
Segundo responsáveis, o aspeto do relatório que mais irritou
Trump foram as grandes revisões em baixa dos meses anteriores, que o presidente
norte-americano alegou publicamente — sem apresentar provas — terem motivações
políticas.
“Foi isso que o fez explodir,” disse um funcionário da Casa
Branca à CNN, acrescentando: “Ele viu as revisões e percebeu que algo estava
errado para que os números fossem alterados de forma tão drástica. E isto não é
algo que acontece pela primeira vez. Tendo em conta que tantas empresas tomam
decisões com base nestes números, é um problema que precisava de ser
resolvido”.
Longe de ser sinal de uma fraude política, no entanto, as
revisões são uma parte normal do relatório mensal de empregos. Uma baixa taxa
de resposta aos inquéritos pode dificultar a estimativa inicial, pelo que o GEL
continua a recolher os dados de folhas de pagamento à medida que são reportados
e revê os dados em conformidade.
Porque é que McEntarfer era diferente de Powell
No início deste ano, Trump teve uma conversa semelhante com
os seus funcionários mais próximos sobre a possibilidade de despedir Powell.
Esses conselheiros advertiram-no contra essa decisão, dizendo-lhe que tal ação
não só era legalmente questionável como tinha implicações mais vastas para a
economia, dado o papel de Powell como independente do poder executivo.
Mas muitos desses mesmos funcionários argumentaram a Trump
que a destituição de McEntarfer, que serve a bel-prazer do presidente, era uma
medida justificável, apesar de o GEL ser
considerado uma agência imparcial.
Altos representantes da Casa Branca, enviados para as
televisões para defender o despedimento, deram explicações variadas, nenhuma
das quais provava claramente a alegação de Trump de que os números do emprego
eram "manipulados" ou "inventados" para o deixar mal visto.
Trump declarou, entretanto, que seria apenas uma questão de
dias até nomear um novo comissário para dirigir a agência, a que se referiu
como "estatístico". O que não foi dito foi como, precisamente, o
nomeado por Trump iria remediar os vários problemas que a equipa do presidente
vê na forma como a agência recolhe e compila os números do emprego.
Tradicionalmente, os dirigentes da agência têm sido
economistas selecionados de outros cargos públicos, de grupos de reflexão ou de
universidades. Nenhum deles foi um nome conhecido, quer antes da sua nomeação,
quer durante o seu mandato.
Representantes da Casa Branca disseram também que Trump
estava à procura de um indivíduo "altamente qualificado" para assumir
o controlo e "modernizar" os métodos do gabinete, mas quem quer que
surja como seleção de Trump irá sem dúvida enfrentar um escrutínio durante o
seu processo de confirmação no Senado, onde até mesmo alguns republicanos
questionaram a atitude abrupta de Trump de demitir o comissário em exercício.
Um dos funcionários da Casa Branca disse que Trump, até
segunda-feira, ainda não tinha tomado uma decisão sobre a substituição de Erika
McEntarfer. Os principais conselheiros do presidente, incluindo a chefe de
gabinete Susie Wiles e os líderes da sua equipa económica - incluindo o diretor
do Conselho Económico Nacional Kevin Hassett, o secretário do Tesouro Scott
Bessent e o secretário do Comércio Howard Lutnick, entre outros - terão um
papel importante na decisão do próximo comissário, disse o funcionário.
William Beach, no programa "State of the Union"
da CNN, disse que quem quer que substitua McEntarfer terá dificuldade em ganhar
credibilidade, apesar de o objetivo declarado de Trump ser restaurar a
confiança nos números.
"Suponhamos que é nomeado um novo comissário e que essa
pessoa, homem ou mulher, é a melhor pessoa possível, certo? E ele/ela fornece
um número que não é positivo. Bem, toda a gente vai pensar que não é tão mau
como provavelmente é, porque vão suspeitar de influência política", disse.
"Portanto, isto é prejudicial. Não é isto que precisamos de ter".
A decisão do presidente norte-americano não parece ter
gerado críticas internas generalizada entre os seus conselheiros, apesar de
economistas externos de ambos os partidos terem criticado a medida e alertado
para o facto de esta poder minar a confiança em números económicos críticos.
"A minha função é apoiar
o presidente nesta questão, e eu apoio-o. Temos de garantir ao povo americano
que podemos confiar nestes dados. São influentes, alteram os
mercados, alteram os investimentos", afirmou a secretária de Estado do
Trabalho, Lori Chavez-DeRemer, numa entrevista à Fox Business no início
de agosto.
Poucas horas antes de Trump anunciar que ia demitir
McEntarfer, Chavez-DeRemer disse que o relatório sobre o emprego "fornece
mais provas de que o povo americano está a ver um verdadeiro progresso".
Outros membros da equipa económica do presidente dos EUA
apoiaram a sua decisão. Muitos foram rápidos a
relacionar os problemas com os números do emprego com a decisão de Powell de
manter as taxas de juro estáveis - para irritação persistente de Trump -
sugerindo que os decisores políticos da Fed não estavam a receber informações
precisas para tomarem as suas decisões.
Em várias entrevistas, Hassett afirmou que o partidarismo se
tinha infiltrado nos relatórios sobre o emprego, sem fornecer quaisquer provas
que sustentassem a afirmação. Numa aparição na Fox News, afirmou que
"os dados não podem ser propaganda", embora não tenha fornecido
quaisquer pormenores que pudessem comprovar a forma como McEntarfer ou as
centenas de profissionais de estatística da agência poderiam ter manipulado os
números.
Hassett sugeriu também na CNBC que o Gabinete de
Estatísticas do Trabalho era apenas mais um foco de oposição entrincheirada a
Trump. "Por todo o governo dos EUA, há pessoas que têm resistido a Trump
em todos os sítios que podem", afirmou.
Como a maioria dos funcionários da administração Trump,
Hassett passou a primeira sexta-feira da maioria dos meses deste ano a elogiar
os relatórios mensais de emprego, referindo que a taxa constante de contratação
era indicativa de uma economia forte. O próprio Trump publicava frequentemente
os relatórios de emprego quando estes revelavam ganhos de seis dígitos, nunca
questionando os números quando estes pareciam mostrar um mercado de trabalho
robusto.
"GRANDES NÚMEROS DO
EMPREGO, MERCADO DE AÇÕES EM ALTA! Ao mesmo tempo, estão a entrar biliões de
dólares das tarifas!!!", publicou Trump em junho, a
propósito do relatório desse mês do GEL.
Foi só depois do péssimo relatório de julho que decidiu
ordenar o despedimento de McEntarfer.
"Isso é um problema"
O furor imediato sobre a decisão de a despedir diminuiu um
pouco durante o fim de semana, apesar de vários membros do Congresso terem
manifestado a sua preocupação antes de deixarem Washington para as férias de
agosto.
"Se o presidente está a
despedir, é porque os números não são fiáveis, seria bom saber isso",
disse a senadora Cynthia Lummis, republicana do Wyoming. "Mas se o presidente está a despedir porque não gosta dos
números - mas eles são exatos - então isso é um problema."
Economistas e profissionais de estatística defenderam Erika
McEntarfer, afirmando que o seu despedimento criaria uma desconfiança
preocupante em relação a dados económicos críticos. No seu discurso de janeiro
em Atlanta, McEntarfer reconheceu os desafios crescentes na elaboração do
relatório mensal sobre o emprego, uma vez que a taxa de resposta aos inquéritos
dos empregadores e dos trabalhadores já não é tão robusta como no passado.
"O nosso objetivo no GEL é modernizar as estatísticas
oficiais para o século XXI", disse McEntarfer, "e tentar colocá-las
num caminho sustentável para o futuro".
Seis meses depois, foi despedida.
Fonte: CNN Portugal, 24 de agosto de 2025
Comentários
Enviar um comentário