O que aconteceria se os Estados Unidos começassem a falsificar os seus dados económicos? Saiba o que aconteceu quando outros países o fizeram
Perry Mason
(1957-1966) – Louise Fletcher, Robert Brown
Mentir aos credores é uma péssima ideia quando se é um indivíduo. É
ainda pior quando se é um país.
Esse é o cenário que os críticos do presidente Donald Trump
levantaram depois de este mês o líder dos Estados Unidos da América (EUA) ter
demitido o responsável máximo do Departamento de Estatísticas do Trabalho, após
dados dececionantes sobre o emprego. Embora não haja indícios de que os dados
tenham sido manipulados (além das afirmações da Casa Branca) — ou que serão
manipulados no futuro —, a nomeação pela Casa Branca de um republicano para
liderar a agência de dados económicos do governo foi suficiente para preocupar
os círculos económicos e financeiros globais.
Há precedentes históricos para esse receio. Países como a Grécia e a Argentina
foram punidos pelos investidores por no passado terem divulgado números falsos.
“O presidente Trump acaba de dar um passo muito negativo
numa ladeira escorregadia”, assegura à CNN Alan Blinder, ex-vice-presidente da
Reserva Federal. “A próxima preocupação será a manipulação” dos dados.
Em jogo está a saúde de uma economia da qual dependem,
direta ou indiretamente, quase todas as pessoas do planeta. A
economia dos EUA afeta todos, desde os americanos que vivem nos luxuosos
arranha-céus de Manhattan até aos trabalhadores que recolhem o lixo nas favelas
dos países em desenvolvimento.
Mas enquanto a Grécia falsificou os seus dados para entrar
na União Europeia e a Argentina continua envolvida em disputas legais sobre os
seus próprios números falsos, há diferenças importantes: a economia dos EUA é a
maior do mundo, impulsionada pelo seu domínio global e anos de força.
A administração Trump afirma que a demissão de Erika
McEntarfer não teve uma motivação política, mas sim o objetivo de tornar os
dados do Departamento de Estatísticas do Trabalho (BLS) mais rigorosos e
precisos.
“As revisões historicamente anormais nos dados do BLS nos
últimos anos, desde a Covid, colocaram em causa a sua precisão, fiabilidade e
confiança. O presidente Trump acredita que as empresas, as famílias e os
decisores políticos merecem dados precisos, e irá restaurar a confiança dos
Estados Unidos no BLS”, afirmou a porta-voz da Casa Branca, Taylor Rogers, numa
declaração à CNN.
Ainda assim, os economistas alertam que os Estados Unidos
estão agora numa espécie de encruzilhada, à espera para ver o que acontece com
as séries de dados que os economistas elogiaram como sendo o padrão ouro, mesmo
que muitos concordem que a atualização e modernização do modelo poderiam
melhorar significativamente a precisão dos dados.
“Não há substituto para dados governamentais credíveis”,
afirmou Michael Heydt, analista da agência de notação Morningstar DBRS.
Grécia e Argentina
Em 2004, a Grécia confessou ter falsificado os números
relativos ao seu défice e dívida pública para garantir a entrada na zona euro
em 2001.
Mas a manipulação dos números não terminou aí. Nomeado para
a agência estatística da Grécia em 2010, o economista Andreas Georgiou tomou
uma decisão ousada: trabalhou para publicar números do défice que
correspondessem à realidade. Após anos de números pouco fiáveis que tornaram os
dados oficiais da Grécia motivo de piada a nível global, os seus esforços foram
verdadeiramente surpreendentes. O que se seguiu foram anos de disputas legais,
e o economista foi processado por supostamente inflacionar os números do défice
do país. Até mesmo a própria UE condenou a Grécia pelos dados falsos.
A falsificação agravou significativamente os efeitos da
crise financeira global de 2008 e 2009 na Grécia. Os credores, receosos quanto
à real situação das finanças públicas gregas, afastaram-se, exigindo taxas de
juro cada vez mais altas para não se desfazerem dos títulos gregos. As medidas
de austeridade exigidas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional
para resgatar a Grécia irritaram a generalidade dos cidadãos.
Imagens de cidadãos gregos em revolta nas ruas, a incendiar
carros e a expressar a sua raiva, sublinharam os perigos.
Na Argentina, acusações de dados não confiáveis sobre a
inflação e o crescimento económico têm assombrado a terceira maior economia da
América Latina há décadas, assustando os investidores, apesar da riqueza do
país em recursos naturais. O então presidente Nestor Kirchner demitiu a pessoa
responsável pela elaboração dos dados sobre inflação porque essa responsável
(corretamente) divulgou o aumento dos preços em 2007. Todos, desde cidadãos
comuns até investidores globais, trataram os dados oficiais sobre a inflação
como suspeitos durante anos depois disso.
Isso contribuiu para que as notações de crédito do país
permanecessem em território de lixo durante anos — um dos fatores que os
investidores normalmente citam para cobrar mais a um país para lhe emprestar
dinheiro. (No caso da Argentina, as anteriores falências soberanas também foram
um fator importante. Afinal, os dados de inflação pouco fiáveis não surgiram do
nada.)
O tema é importante para a generalidade das pessoas porque
as dívidas de curto e longo prazo, sejam elas do governo federal ou de pequenas
cidades e municípios, podem ajudar a financiar tudo, desde novas escolas e
estradas até serviços essenciais. Quando os
credores fecham a torneira do dinheiro – ou cobram caro pelo acesso –, isso
significa que, no fim das contas, são as pessoas comuns que pagam o preço.
Mas os Estados Unidos estão longe de replicar qualquer um
desses cenários disse Robert Shapiro, presidente da empresa de consultoria
económica Sonecon e ex-subsecretário de Comércio para Assuntos Económicos do
presidente Bill Clinton. Quando se descobriu que os dados eram falsos tanto na
Grécia como na Argentina, essas economias já estavam em péssima situação,
destacou.
“Assim, o impacto da incapacidade dos mercados de confiar
nos dados foi um pouco menor, porque os mercados já estavam a afastar-se do
investimento e do emprego.”
A economia dos EUA está a
crescer, atingindo uma taxa anualizada relativamente robusta de 3% no segundo
trimestre. E com mais de 30 biliões de dólares, a economia dos EUA
tem um peso que tanto a Grécia como a Argentina não têm.
“Somos a maior economia do
mundo. Somos, de longe, o maior centro financeiro do mundo”, disse
Shapiro.
Um padrão global
Trump demitiu Erika McEntarfer, comissária do Departamento
de Estatísticas do Trabalho (BLS), logo após o relatório de empregos de agosto
mostrar um crescimento de empregos significativamente mais lento do que o
esperado para julho – e revisões significativas para baixo nos dados de junho e
maio. Trump acusou McEntarfer, sem provas, de manipular os relatórios para
‘fins políticos’.
Os analistas discordaram. Os
EUA são “líderes mundiais no fornecimento de dados de alta qualidade”,
disse Heydt. “O BLS, em particular, é uma instituição de classe mundial... Os
EUA têm sido, há muito tempo, uma espécie de padrão ouro para dados.”
William Beach, responsável do BLS de Trump, disse
anteriormente à CNN que “não há como” McEntarfer ou outros responsáveis
manipularem os dados. “Quando o responsável vê os números, já estão todos
preparados, bloqueados no sistema informático”, disse. “Não há qualquer
intervenção manual por parte do responsável.”
Mas grandes revisões nos dados do departamento têm chamado à
atenção, não apenas neste mês, mas também no passado. Uma revisão anual
preliminar em agosto de 2024, por exemplo, mostrou que a economia dos EUA criou
818 000 empregos a menos no último ano do que o relatado anteriormente.
Esse tipo de revisão significativa pode sugerir questões
mais profundas, como a forma como o BLS obtém os seus dados e constrói os seus
modelos económicos, disse Kathryn Rooney Vera, economista chefe da empresa de
serviços financeiros StoneX.
“Vários economistas e equipas de investigação com quem
trabalho já tinham assinalado estas questões como problemas estruturais dos
dados muito antes do envolvimento de Trump ou da demissão da diretora do BLS”,
disse Rooney Vera à CNN.
E Shapiro apontou outro problema: cortes orçamentais. O BLS
já anunciou que irá reduzir a recolha de alguns dados devido à diminuição do
número de funcionários. Isso, por sua vez, significa que poderá demorar mais
tempo a obter os números finais para a divulgação dos dados.
No caso do relatório de empregos, as grandes empresas
geralmente respondem primeiro com as informações. As empresas menores tendem a
ficar para trás. “E assim recebem-se muitas respostas depois da data em que a
estimativa inicial é divulgada”, disse ele, levando a revisões posteriores.
Ainda assim, os EUA têm outras fontes de dados, tanto
públicas quanto privadas, para completar um quadro mais completo da economia.
Shapiro apontou para o Departamento do Censos e o Departamento de Análise
Económica: “Essas instituições são compostas praticamente 100% por estatísticos
e economistas”, disse Shapiro. “Eles são totalmente apolíticos nos seus
trabalhos.”
Fonte: CNN Portugal, 19 de agosto de 2025
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