Ataque israelita em Doha destruiu a credibilidade americana
Perry Mason (1957-1966) – Suzanne Lloyd
Após
décadas de impunidade pelas suas violações do direito e das normas
internacionais, Israel já não hesita em fazer o que bem lhe apetece. Para além
das vítimas individuais do ataque aos negociadores do Hamas no Qatar, a
principal vítima da escalada israelita é a credibilidade americana
Não é claro se, e quanto, os Estados Unidos sabiam sobre o
ataque aéreo israelita contra os negociadores do Hamas na capital qatari, Doha.
Mas já não restam dúvidas de que Israel assumiu carta branca. Após décadas de
impunidade pelas suas violações do direito e das normas internacionais, Israel
já não hesita em fazer o que bem lhe apetece. Para além das vítimas
individuais, a principal vítima da escalada israelita é a credibilidade
americana.
Israel – beneficiário de milhares de milhões de dólares de
ajuda americana anual – celebrou abertamente o ataque. Até o arquirrival do
primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, o líder da oposição Yair Lapid, felicitou
publicamente a "Força Aérea, as Forças de Defesa de Israel (IDF), o Shin
Bet e todas as forças de segurança por uma operação excecional para frustrar os
nossos inimigos".
Enquanto Israel vagueia livremente pela região, bombardeando
outros países à vontade, a influência dos Estados Unidos diminuiu. Desde a
invasão do Iraque, a sua credibilidade nunca tinha sido tão baixa. O elemento
mais preocupante do ataque de Doha era o seu alvo. O objetivo de
Israel era assassinar os negociadores que se reuniam para discutir a proposta
de cessar-fogo dos Estados Unidos. Ao fazê-lo, não só sabotou as negociações de
cessar-fogo, como também manchou a palavra dos Estados Unidos.
Infelizmente, há algum precedente para o ataque israelita.
Em Jerusalém, há 77 anos, um mediador de paz das Nações Unidas, o diplomata sueco Folke Bernadotte,
foi assassinado por extremistas judeus que atuavam sob a autoridade de Yitzhak
Shamir, entre outros. Shamir viria a ser mais tarde primeiro-ministro de
Israel, nomeando Netanyahu como seu porta-voz. Mesmo que a violência contra os
enviados de paz não seja nova, é sempre corrosiva.
Entretanto, os palestinianos têm assistido aos EUA a
protegerem repetidamente Israel de responsabilidades. Sucessivos governos
americanos, tanto o de Joe Biden como o de Donald Trump, têm encoberto os
bombardeamentos israelitas contra hospitais e os ataques a jornalistas e
trabalhadores humanitários em Gaza. Ignoraram a violação de um cessar-fogo por
parte de Israel e o cerco ao enclave. Chegaram mesmo a punir palestinianos
fechando a sua missão diplomática em Washington e negando vistos a autoridades
palestinianas convidadas para a Assembleia Geral da ONU em Nova Iorque.
A proposta de cessar-fogo dos EUA, agora frustrada, era
tendenciosa a favor de Israel. Exigiu a libertação de todos os reféns
israelitas que restavam no primeiro dia, em
troca da garantia dos EUA de que pressionariam Israel a retirar de Gaza e a
terminar a guerra. Claramente, Israel tinha outra coisa em
mente. Ao matar negociadores, destrói a única via disponível para trazer o seu
próprio povo de volta em segurança.
Além disso, as políticas israelitas de assassinato nunca
conseguiram pôr fim à resistência. Israel matou um líder do Hamas após outro,
apenas para que novas figuras – geralmente ainda mais radicais – tomassem os
seus lugares. Foi exatamente isso que aconteceu após o assassinato de Ismail Haniyeh, chefe do Gabinete Político do
Hamas, em 2024, em violação da soberania de outro Estado-membro da ONU, o Irão.
A credibilidade dos Estados Unidos em oferecer propostas de
cessar-fogo baseava-se unicamente na crença de que poderiam e iriam cumprir o
que fosse acordado. Mas a sua falta de controlo sobre o seu aliado foi agora
exposta. Ao visar os negociadores do Hamas que avaliavam a validade das
garantias americanas, Israel fechou a porta a esta proposta e a qualquer acordo
futuro. Provavelmente era isso mesmo que
Netanyahu pretendia. Procurado internacionalmente por crimes de
guerra e tendo sido acusado em Israel por corrupção, concluiu que acabar com a
guerra também acabaria com a sua carreira.
A confiança, uma vez quebrada, é difícil de restaurar. O
Qatar, lar da maior base militar americana na região, já ameaçou suspender o
seu papel de mediador. Mas se os EUA e os seus aliados regionais já não puderem
atuar como mediadores, ninguém o poderá fazer. Não há outra potência com a
influência necessária para chegar a um acordo ao qual Netanyahu se oponha.
Dada a sua própria relação
tensa com a verdade, Trump pode acreditar que a credibilidade não importa.
Mas, na construção da paz no Médio Oriente, ela é tudo. Sem ela, as negociações
fracassarão antes mesmo de começarem. A administração Trump está a aprender
isso da maneira mais difícil, em tempo real. A influência americana está a
diminuir rapidamente, não só em Gaza, mas a nível global, como demonstra o
vergonhoso fracasso em terminar a guerra na Ucrânia no "primeiro
dia".
Como entendeu o ex-presidente norte-americano Ronald Reagan,
fazer um acordo com um adversário exige "confiar, mas verificar". Com
Trump e Netanyahu, não pode haver confiança. O único caminho a seguir é através
de ações concretas: uma retirada total e verificada das tropas israelitas de
Gaza em troca da libertação de reféns israelitas e prisioneiros palestinianos
(muitos dos quais estão presos indefinidamente sem acusação). Qualquer coisa
menos do que isso será descartada como palavras vazias.
Israel e o seu patrono americano meteram-se num buraco
profundo. Sair exigirá mais do que retórica. Exigirá ações verificáveis, porque
neste conflito, a confiança nos Estados Unidos desapareceu.
Daoud Kuttab
Fonte: Project Syndicate, 11 de setembro de 2025
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