EUA apertam o cerco mortal do dólar à democracia brasileira

 


Beyond Paradise (2023) - Alicia Charles

Ao impor sanções ao ministro do Supremo Tribunal do Brasil, Alexandre de Moraes, a administração do presidente dos EUA, Donald Trump, lançou um ataque sem precedentes à independência judicial do Brasil. A medida sublinha ainda como a primazia global do dólar mina a soberania de outros países

Numa carta aos maiores bancos brasileiros, o Escritório de Controlo de Ativos Estrangeiros (OFAC) do Tesouro dos EUA exigiu saber que medidas estavam a ser tomadas para cumprir as sanções recentemente impostas ao ministro do Supremo Tribunal, Alexandre de Moraes, ao abrigo da Lei Global Magnitsky de Responsabilidade pelos Direitos Humanos. A administração do presidente Donald Trump transmitiu uma mensagem inequívoca: os Estados Unidos dão cartas e os outros devem seguir o exemplo.

A decisão de juntar Moraes à lista americana dos "Nacionais Especialmente Designados" é inédita, dado que não é um oligarca acusado de corrupção nem um violador dos direitos humanos. Em vez disso, Moraes tem sido alvo de supervisão de processos criminais relacionados com a insurreição de 8 de janeiro de 2023 em Brasília, quando apoiantes do então presidente Jair Bolsonaro invadiram o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal e o palácio presidencial na tentativa de reverter a sua derrota eleitoral.

Embora isto possa parecer uma questão de conformidade técnica, as ações de Trump são um ataque à independência do sistema judicial brasileiro. Sancionar Moraes faz mais do que restringir as suas finanças pessoais; pressiona indiretamente as instituições que representa. Obriga também os bancos brasileiros a escolher entre manter as decisões judiciais nacionais – incorrendo, assim, em severas penalizações americanas – e preservar o acesso aos mercados globais. Qualquer das opções corre o risco de minar a sua legitimidade interna e externamente.

A carta do OFAC sublinha ainda a fragilidade da soberania económica. Embora a Lei Magnitsky seja formalmente um estatuto americano, o papel do dólar como principal moeda de reserva mundial estende o seu alcance muito para além das fronteiras americanas.

Os bancos brasileiros, bem como os seus equivalentes em todo o mundo, dependem dos bancos americanos para compensar as transações em dólares, e muitos mantêm subsidiárias em Nova Iorque e noutros grandes centros financeiros. Quer esteja a exportar soja para a Ásia ou a emitir obrigações em Wall Street, a infraestrutura financeira da qual depende é americana. E esta dependência significa que desconsiderar o OFAC não é um ato de desafio, mas um passo em direção ao exílio financeiro, se não mesmo à ruína total.

Este é o paradoxo da soberania. Legalmente, os tribunais brasileiros podem decidir que as sanções americanas não se aplicam internamente, uma vez que, tanto pelo direito constitucional como internacional, devem ser formalmente promulgadas medidas estrangeiras para entrarem em vigor. Mas, economicamente, o cumprimento é inevitável, dado que os seus sistemas comercial e financeiro dependem de uma infraestrutura baseada no dólar fora do seu controlo. Na prática, a soberania monetária termina na periferia do sistema do dólar.

A ironia é impressionante. Os Estados Unidos já utilizaram a Lei Magnitsky para confrontar abusos autoritários no estrangeiro, principalmente ao sancionar autoridades russas implicadas no assassinato, em 2009, do consultor fiscal e denunciante Sergei Magnitsky. Hoje, o governo utiliza a mesma lei para intimidar um juiz que procura defender a ordem democrática brasileira. Ao utilizar ferramentas de política externa para influenciar os processos judiciais internos, a administração Trump reduziu efetivamente a soberania do Brasil a um teste de obediência.

Os decisores políticos brasileiros estão numa posição difícil. Encaminhar as transações financeiras pessoais de Moraes através de cooperativas nacionais é, na melhor das hipóteses, uma solução temporária que não contribui em nada para resolver o problema subjacente. E as alternativas a longo prazo, como os sistemas de pagamento globais baseados na tecnologia blockchain, continuam longe de ser viáveis.

Com o Brasil ainda preso à atração gravitacional do dólar, a atual crise sublinha a urgência de investir em alternativas ao sistema baseado no dólar. Como argumentei num recente documento de política, as novas tecnologias e plataformas – desde redes baseadas em blockchain a pagamentos transfronteiriços instantâneos – podem tornar as liquidações mais eficientes e potencialmente desafiar o domínio do dólar.

Por enquanto, porém, estas iniciativas não passam de projetos-piloto fragmentados, confinados a "coligações de vontades", excluindo muitas vezes as economias em desenvolvimento que estão mais dependentes do dólar. Além disso, mesmo as plataformas multimoeda mais avançadas ainda recorrem ao dólar ou ao euro quando as moedas locais não têm liquidez suficiente, reproduzindo a hierarquia que afirmam desafiar.

Posto isto, estas inovações monetárias oferecem um vislumbre de um futuro em que as infraestruturas multilaterais deixarão de ser controladas por um único governo ou por organizações privadas que operam sob a jurisdição de um país. Mas a concretização deste futuro exigirá uma extraordinária cooperação diplomática e técnica, a par de novas estruturas de governação. Até lá, o poder extraterritorial do dólar continuará incomparável.

Neste sentido, a carta do OFAC é mais do que uma mensagem aos bancos brasileiros; é um lembrete a todos os países do extraordinário poder que os EUA exercem através do controlo da infraestrutura financeira mundial. Para o combater, devem trabalhar em conjunto para desenvolver alternativas fiáveis, tais como moedas digitais de bancos centrais, redes interoperáveis ​​de pagamentos instantâneos e acordos multilaterais mais amplos. Caso contrário, a sua soberania monetária e autonomia política ficarão à mercê dos decisores políticos americanos.

Camila Villard Duran

Fonte: Project Syndicate, 9 de setembro de 2025

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