A identidade digital é um desastre em formação

Perry Mason (1957-1966) – Frances Rafferty

O Estado britânico é tão incompetente quanto autoritário

Como diz o velho ditado, para o homem com um martelo, cada problema parece um prego. Para o tecnocrata trabalhista, não há problema que não possa ser resolvido com um sistema nacional de cartões de identidade.

Assim, o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, adotou a política mais neo-laboral de todas. O primeiro-ministro anunciou esta semana que os cartões de identidade digitais – que serão conhecidos, à moda da era Blair, como "BritCards" – vão ajudar a resolver o problema da imigração ilegal. "A identidade digital é uma enorme oportunidade para o Reino Unido", disse. "Vai tornar mais difícil trabalhar ilegalmente neste país, tornando as nossas fronteiras mais seguras".

É claro que não há evidências de que isso aconteça. Os Estados-membros da União Europeia (com exceção da Dinamarca) emitem cartões de identidade há anos. Se o grande volume de imigração ilegal serve de indicação, os cartões de identidade não têm feito nada para tornar as fronteiras europeias mais seguras ou para reprimir o trabalho ilegal. Então, porque é que a introdução da identidade digital deveria ser mais eficaz no Reino Unido?

Os defensores afirmam que a identidade digital obrigará os empregadores a verificar o estatuto de imigração dos seus empregados, embora os empregadores já sejam obrigados a fazê-lo. A presença ou ausência de cartões de identidade, digitais ou não, não fará qualquer diferença. Aqueles que se aproveitam intencionalmente da mão-de-obra migrante barata dificilmente começarão a obedecer às leis laborais do Reino Unido por causa de uma nova aplicação para smartphone.

A migração ilegal é apenas a mais recente de uma longa série de justificações para um sistema de identidade obrigatório. Quando Tony Blair e o New Labour promoveram pela primeira vez o cartão de identidade em meados dos anos 2000, apresentaram-no sobretudo como um meio de fazer com que as pessoas se sentissem seguras. De facto, em abril de 2004, Blair defendeu o cartão de identidade no contexto explícito da ameaça terrorista pós-11 de setembro. Mais tarde, nesse mesmo ano, o então secretário do Interior, David Blunkett, sugeriu que os cartões de identidade poderiam cultivar o sentimento de pertença nacional das pessoas. Fortaleceriam "a nossa identidade", aparentemente, "reforçando a confiança, o sentido de cidadania e o bem-estar das pessoas".

Nas mãos do New Labour, parecia não haver nada que um sistema nacional de cartões de identificação não pudesse alcançar: desde combater o terrorismo até fomentar um sentido de identidade britânica. Mas o seu sonho managerialista de uma cidadania totalmente conhecida e categorizada pelo Estado esbarrava constantemente na resistência pública. As pessoas simplesmente não queriam estar expostas ao olhar constante da máquina oficial. Como George Orwell bem percebeu, “o nome mais odioso para um ouvido inglês é Nosey Parker” [o bisbilhoteiro intrometido].

A Lei dos Cartões de Identidade pode ter sido aprovada pelo parlamento em 2006, mas uma pequena implementação nos aeroportos de Manchester e London City foi praticamente abandonada em 2008, devido à oposição dos sindicatos e às derrapagens orçamentais. Em 2010, com a coligação conservadora-liberal-democrata do primeiro-ministro David Cameron recém-instalada no poder, o sistema de cartões de identidade foi cancelado sem cerimónias (e a Lei dos Cartões de Identidade foi revogada). Outros esquemas igualmente intrusivos para recolher e compilar dados privados, incluindo o Registo Nacional de Identidade e a malfadada base de dados de proteção da criança, ContactPoint, seguiram o mesmo caminho.

A decisão da coligação de descartar o sistema de cartões de identidade foi uma vitória para as liberdades civis. Estas artimanhas do New Labour intrometiam-se certamente na vida privada das pessoas, expondo-as aos olhos bisbilhoteiros do Estado. Mas houve outra razão para que a coligação lhes virasse as costas. Era a era da austeridade – e estes projetos eram fracassos caros. Permanecem como testemunhos duradouros da incapacidade e incompetência do Estado britânico moderno.

Isto deve deixar-nos duplamente desconfiados do plano BritCards de Starmer. O Estado tem um historial lamentável quando se trata de praticamente qualquer projeto de grande escala, mas especialmente de empreendimentos de TI de grande escala.

Veja-se o agora infame Programa Nacional de TI (NPfIT), que pretendia revolucionar o NHS, integrando todos os registos eletrónicos dos pacientes num único sistema de TI. Lançado em 2002, o projeto enfrentou dificuldades técnicas, disputas contratuais e enormes derrapagens orçamentais. Foi finalmente abandonado em 2011, com um custo de mais de 10 mil milhões de libras. O Comité de Contas Públicas descreveu-o como um dos "piores e mais dispendiosos fiascos de contratação" da história do setor público.

Há ainda o horrendo escândalo dos Correios Horizon. Graças a um sistema de software de contabilidade defeituoso, financiado pelo Estado e desenvolvido pela Fujitsu, mais de 900 subchefes de correios foram injustamente condenados por roubo, fraude e contabilidade falsa entre 1999 e 2015. Esta calamidade arruinou inúmeras vidas.

Já não há razão para confiar ao Estado um projeto de TI hoje. Como Andrew Orlowski observou no Spiked no início deste ano, o governo está atualmente a desenvolver e a expandir o OneLogin, que fornece um login digital único para aceder a todos os serviços governamentais e armazena os dados pessoais de cerca de três milhões de cidadãos. Como provavelmente já deve ter adivinhado, tem sido desastrosamente mal gerido. Os contratados externos têm obtido um acesso enorme e abrangente à informação privada dos cidadãos. O risco de violações de dados é bastante óbvio.

Não há absolutamente nenhuma razão para acreditar que o Estado possa reunir dados privados atualmente espalhados por sistemas e departamentos governamentais díspares sem os estragar. Mas mesmo que o Estado fosse capaz de criar um sistema de identificação digital eficaz, isso não seria uma boa ideia. Não só deixaria de resolver o problema da imigração ilegal e colocaria os nossos dados em risco, como também corroeria a nossa liberdade e privacidade. E esse é o verdadeiro problema aqui.

A identificação digital transformar-nos-ia de cidadãos livres em objetos a serem vigiados, monitorizados e geridos. É por isso que os tecnocratas trabalhistas não conseguem pôr isso de lado.

Tim Black

Fonte: spiked, 27 de setembro de 2025

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