Tentativas de deslegitimar: Netanyahu na Assembleia Geral da ONU

 

É preciso muito para fazer com que os delegados da ONU abandonem um discurso na Assembleia Geral. Mas foi exatamente isso que o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, conseguiu no seu discurso de 26 de setembro. O seu discurso começou por tentar mostrar o seu país como um guardião da lei e da civilização, travando uma guerra solitária e sem apoio contra os bárbaros diabólicos. "No ano passado, subi a este pódio e mostrei este mapa. Mostra a maldição do eixo terrorista do Irão." Tal eixo ameaçava "a paz do mundo inteiro. Ameaçava a estabilidade da nossa região e a própria existência do meu país, Israel. O objetivo era também ameaçar os Estados Unidos e chantagear nações em todo o mundo.”

O discurso passou depois para um registo triunfal. O Hezbollah tinha sido intimidado. Os Houthis tinham sido "martelados". A "maior parte da máquina terrorista do Hamas" tinha sido "esmagada". Os armamentos de Bashir al-Assad foram destruídos, as milícias xiitas iranianas no Iraque foram dissuadidas. "E o mais importante, e acima de tudo o que vos poderia dizer ou que fizemos neste último ano, nesta última década, devastámos os programas de armas atómicas e mísseis balísticos do Irão." O programa de assassinatos de Israel – o assassinato de cientistas nucleares iranianos, o assassinato de líderes do Hamas e do Hezbollah, o massacre de metade da liderança Houthi – foram também pontos de celebração. Em relação ao Hamas, Netanyahu disse o seguinte: "Os últimos restos do Hamas estão entrincheirados na Cidade de Gaza. Prometem repetir as atrocidades de 7 de outubro vezes sem conta. É por isso que Israel deve terminar o trabalho."

Qualquer pessoa familiarizada com a peculiar mestria de Netanyahu na cartografia disneyana ou com as suas previsões falhadas sobre o poder militar de outros Estados já reconhece aqui a performance forçada. Essencial ao seu argumento é a deslegitimação da causa do Estado palestiniano, tratada como mero apêndice de uma potência estrangeira e de um movimento externo. Sem grande esforço, prossegue ligando o “massivo programa nuclear e massivo programa balístico” do Irão aos terroristas de Hamas enviados pelo falecido Yahya Sinwar quando atravessaram para Israel a 7 de outubro de 2023, aos mísseis e rockets do Hezbollah no Líbano, ao agora deposto regime de Assad na Síria, que “albergava as forças iranianas, apertando o laço da morte à nossa volta”. Para compor o ramalhete, também os Houthis do Iémen foram atirados para o mesmo saco.

Este raciocínio de má qualidade partilha a paranoia que os estrategas americanos demonstraram com uma intensidade febril durante a Guerra Fria. Houve uma recusa obstinada, pelo menos até à administração Nixon, em ver as insurgências comunistas como produto de condições locais, em vez de movimentos direcionados de Moscovo e Pequim. A assistência e o auxílio ao Vietname do Norte, por exemplo, foram mal interpretados como comando e controlo.

Do mesmo modo, Netanyahu vê o Islão radical como um bloco monolítico de obscurantismo que absorveu a causa palestiniana. Irão, Hamas, Hezbollah e os Houthis gritam todos “Morte à América”. Todos “assassinaram americanos e europeus a sangue-frio”. Os inimigos de Israel eram inimigos do Ocidente. “Querem arrastar o mundo moderno de volta ao passado… para uma idade das trevas de violência, fanatismo e terror.” Com propósito demagógico, apontou ainda para a “ascensão islamista radical” nas próprias sociedades dos aliados de Israel. Agradeçam a Israel, declarou, por ter a capacidade de fornecer a inteligência de Cinco Agências Centrais de espionagem, por fazer, citando o chanceler alemão Friedrich Merz, “o trabalho sujo por todos nós.”

O primeiro-ministro israelita representa um país cujos magistrados e representantes troçam e escarnecem do direito internacional, cultivando um excecionalíssimo que lhe conferiu um carácter cada vez mais fora-da-lei. Netanyahu despreza as acusações de que as FDI não estão a minimizar o sofrimento dos civis, alegando que a proporção entre baixas civis e combatentes é “inferior a dois para um”, muito “mais baixa do que nas guerras da NATO no Afeganistão e no Iraque”. Esta visão é, no mínimo, espantosa, tendo em conta que os próprios dados militares israelitas, revelados pelo The Guardian, pela revista +972 e pelo Local Call, mostram que 83% dos mortos em Gaza eram civis.

Além disso, mesmo nos casos em que civis foram mortos, alegou-se que isso só aconteceu devido à coação exercida pelo Hamas. A afirmação repetida até à exaustão era a de que a organização “se implanta em mesquitas, escolas, hospitais, edifícios residenciais e tenta forçar esses civis a não sair, a permanecer em zonas de perigo”. Esta é uma narrativa conveniente, que serve para justificar a destruição de infraestruturas críticas e dos elementos essenciais de uma sociedade funcional. Infelizmente, as provas fornecidas pelas FDI relativamente a muitas destas alegações têm sido escassas.

As alegações de genocídio, reforçadas pelas conclusões de uma comissão independente de inquérito da ONU, da Associação Internacional de Estudiosos do Genocídio e de vários grupos de defesa dos direitos humanos, incluindo o próprio B’Tselem de Israel, foram também descartadas como libelos de sangue. Aqueles que desejam cometer genocídio nunca "implorariam à população civil que supostamente visam para que se afaste do perigo". Os nazis nunca tiveram a gentileza de dizer aos judeus que "por gentileza, se fossem embora".

Quanto à chamada política de fome, tratava-se de mais uma mentira. “Há uma tonelada de ajuda para cada homem, mulher e criança em Gaza”, com cada pessoa a receber 3000 calorias por dia. “Que grande política de fome!” É preciso uma boa dose de descaramento para sustentar tamanha falsidade e autoilusão, negando a militarização do modelo de ajuda na Faixa, em que bens essenciais são racionados através de um número limitado de pontos de entrega, defendidos por empresas de segurança privadas e por soldados das FDI de dedo leve no gatilho.

Quanto à mais recente vaga de países a reconhecer o Estado da Palestina, Netanyahu limitou-se a vociferar. “Assassinar judeus compensa.” As forças do antissemitismo tinham sido recompensadas por França, Reino Unido, Austrália e Canadá, entre outros Estados. “A vossa decisão vergonhosa encorajará o terrorismo contra judeus e contra pessoas inocentes em todo o lado.”

Sobre a questão da solução de dois Estados, o argumento foi habilmente invertido. Israel acreditava na fórmula. Eram aqueles palestinianos ingratos e malévolos que nunca acreditaram. Foram-lhes “dados territórios” apenas para depois atacarem Israel em circunstâncias “totalmente não provocadas”. De forma absurda, Netanyahu chegou a chamar Gaza de proto-Estado palestiniano, um presente do Estado judaico. Pouco importa que se tenha tornado na maior prisão a céu aberto do mundo, com os seus habitantes transformados em cobaias convenientes da vigilância, da tecnologia e da experimentação militar israelita.

Enquanto os palestinianos existirem em Gaza e na Cisjordânia, serão lembranças incómodas do projeto colonial, dos roubos, das expropriações, da violência sistemática. Enquanto tiverem representantes políticos de qualquer cor, ou uma voz que se faça ouvir sob qualquer forma – literatura, meios de comunicação, tribuna ou até pela arma – estarão a exercer os mesmos direitos de autodeterminação que permitiram a criação de Israel. Foram esses direitos que Netanyahu demonstrou desprezar com tanto desdém neste discurso indignado.

Fonte: Middle East Monitor, 28 de setembro de 2025

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Tomás Taveira e idade de ouro portuguesa

Nem Antetokounmpo escapa a Donald Trump: "Somos igualmente gregos"