1983
Fundo Monetário Internacional aterra novamente em Portugal: Mário Soares e o seu ‘czar’ das Finanças, Ernâni Lopes, o inconfundível ministro do cachimbo que sacou 350 milhões de euros ao FMI
Portugal viu maminhas pela primeira vez em 1969. A primavera marcelista fez-se anunciar no Tivoli, com os seios imunes a tesouradas de Romy Schneider (A Piscina, Jacques Deray).
Estreado segunda-feira, 14 de abril de 1969 no Tivoli
Portugal, império dos sentados, viu O Império dos Sentidos em 1991 e o arcebispo de Braga confessou que aprendeu mais em 20 minutos do que em 60 anos.
Exibido às 21h55, terça-feira, 19 de fevereiro de 1991, na
RTP2
O arcebispo Eurico Nogueira declarou "em entrevista ao Expresso:
“Aprendi mais em meia-hora a ver O Império dos Sentidos do que em 67
anos de vida”, disse, acrescentando
ter tido “horríveis vómitos”. Ao Público sugeriu que o melhor
horário para “filmes assim” seria “às duas ou três da noite, que será hora adequada para
marginais e certos doentes”.
Entre essas duas datas marcantes da cultura portuguesa,
houve uma outra: 1983. Em 1983, aconteceu o "caso Pato com Laranja". Na minha vaga
memória (tinha dez anos), era uma vaga polémica por causa de um filme
"erótico" que passou na TV. Mas não foi bem assim: na verdade, o
filme foi interrompido devido a protestos de espectadores, e surgiu um
embaraçoso apagão até ser reposta a legalidade (tinha graça se tivessem metido
Danny Kaye, como já tinham feito a Duran Clemente em 75). O caso fez uma
vítima: o presidente do Conselho de Administração da RTP, João Palma-Ferreira,
que se demitiu. Um escândalo, daqueles bem pategos.
Seria curioso revisitar essa polémica nos arquivos dos
jornais da época, mas até na Internet se encontram ecos do caso, como no
conhecidíssimo Internet Movie Database, que conta: "Quando o filme
foi exibido em Portugal, causou um pequeno escândalo político por causa de
alegadas cenas explícitas. O administrador da TV pública apareceu em antena a
seguir ao filme para pedir desculpa pelos conteúdos mostrados, e isso tornou um
incidente menor num assunto político sério. Hoje em dia, ninguém ligaria
nenhuma à cena em que a atriz mostra o rabo nu".
Tinha, como disse, dez anos, e não vi as imagens na altura,
mas lembro-me da polémica, lembro-me que toda a gente falava disso no dia
seguinte, e sempre fiquei com a ideia de que se tratava de um filme
"quente", precocemente programado. Agora, um editor nostálgico, que
talvez tivesse dez anos em 1983, editou em DVD Pato com Laranja, e estudei
finalmente o escandaloso objeto. Aqui vai uma sinopse: não é um objeto
escandaloso.
L'anatra all'arancia (1975), de Luciano Salce, adapta
uma peça revisteira sobre um casal que decide lidar de forma
"moderna" com o adultério. Lisa (Monica Vitti) arranja um amante,
Jean-Claude (John Richardson), e o marido de Lisa, Livio (Ugo Tognazzi),
convida civilizadamente o amante da mulher e uma secretária, Patty (Barbara
Bouchet), para um ambíguo convívio numa casa de campo. Salce diverte-se
testando os limites do "casamento progressista": Livio está
"calmo como um inglês", reagindo com grande fleuma ao adultério da
mulher, e passa o tempo em conversas aparentemente amáveis ou a preparar
cocktails, escondendo a sua raiva. Lisa diz que não quer apenas uma
"aventura", quer mesmo divorciar-se ("Finalmente temos uma lei,
temos de a aproveitar"). Jean-Claude, o amante aristocrata, é tão
previsível como pode ser um Jean-Claude, amante aristocrata. E Patty, a
secretária bimba, interpretada por uma ex-Bond girl, limita-se a mostrar as
mamas e o rabo ("Che culo", exclama Tognazzi, a fazer de
italiano).
Foi o culo de Barbara Bouchet que "chocou"
muita gente, e que tramou o administrador da TV pública, que pediu desculpa
pelas nádegas ao serão. Visto um quarto de
século depois desse episódio, Pato com Laranja é ainda mais
ridiculamente inócuo, uma daquelas comédias de costumes à italiana cheias de “malícia”,
mas ligeiríssimas e no fim de contas bastante conservadoras. Porque todo o
filme joga com a falsa indiferença modernaça do casal, que testa o protocolo do
adultério consentido e galante, mas que acaba violentamente tomado por uma
"crise de possessivité" (em francês no original). E percebem
que são inseparáveis. Desculpem se vos estraguei o fim.
Luciano Salce foi um ator e cineasta prolífico, e Pato
com Laranja é como aquelas amáveis comédias de Vittorio De Sica, só que com
alguma nudez e piadas (frouxas) sobre chicotes e outras malandrices. Livio e
Lisa estão casados há dez anos, e nunca queremos que eles se separem: aquele
adultério duplo é apenas uma prova de fidelidade, e uma oportunidade para
joguinhos e sarcasmos que alimentam a saúde matrimonial. Ugo Tognazzi fez um
Mastroianni dos pobrezinhos, numa cortesia raivosa que usava bem. E Monica
Vitti (bianca, bionda, de vestidos decotados vaporosos e olhos verdes frios)
lembra a paródia de Woody Allen aos filmes de Antonioni, com aqueles casais tão
hirtos e sofisticados que só atingiam o orgasmo em sítios públicos. Erotismo?
Nenhum. Perversidade? Leiam O Amante (1962), de Harold Pinter, para um
bocadinho de perversidade conjugal. Graça? Só me ri uma vez: quando depois da
queca a secretária diz a Tognazzi qualquer coisa como "um homem tão viril
devia ser presidente da Fiat". Em termos cómicos, há, a dado passo, uma
frase programática, que anuncia "um número estúpido e por isso adequado ao
nosso público".
Nem graça, nem perversidade, nem erotismo. Malícia
revisteira e um rabo à italiana. Por alguma razão o filme agora tem a
classificação etária "para maiores de 12". Mas, em 1983, Portugal
democrático há quase uma década, ainda havia telefonemas, apagões, desculpas e
demissões. Éramos assim absurdos em 1983.
Pedro Mexia
Fonte: Público, 16 de maio de 2009
L'anatra all'arancia de Luciano Salce Itália, 1975,
105', com Monica Vitti, Ugo Tognazzi, Barbara Bouchet
Entre os anos 50 e os anos 80, Luciano Salce realizou
dezenas de comédias italianas, género de que ele foi, se não um dos mais
famosos, um dos mais prolíficos realizadores. Pato com Laranja, no
original L'anatra all'arancia, é o seu filme mais conhecido em Portugal
- e ainda há muita gente à espera de saber "como é que acaba", depois
da infame exibição na televisão nacional portuguesa. Ugo Tognazzi e Monica
Vitti protagonizam esta paródia do matrimónio e da masculinidade, de resto
temas regulares na commedia all'Italiana.
Pato
com Laranja foi
transmitido pela primeira vez na RTP1, na Noite de Cinema, quarta-feira dia
21 de setembro de 1983, em pleno horário nobre. Quando o filme foi para
o ar, logo após o Telejornal, chegaram à redação da RTP vários
telefonemas de telespectadores revoltados, a insultarem o filme devido a
algumas cenas de nudez. Hoje em dia, ninguém ligaria nenhuma ao plano em que a
atriz Barbara Bouchet mostra o rabo nu, porém na altura tornou-se num assunto
sério.
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