Tomás Taveira: as cólicas de um arquiteto
Lucifer - Brianna Hildebrand
Sim, é um facto que, na melhor das hipóteses, o arquiteto
Tomás Taveira será recordado no futuro como o distinto autor das Torres das
Amoreiras, em Lisboa, mas também, ou sobretudo, como o não menos distinto ator
(e produtor e realizador) daqueles filminhos caseiros que causaram um clamor
danado nos idos anos 90 e que ainda hoje são lembrados, proeza a dele, como a maior escandaleira sexual na
história do Portugal democrático. Como então disse Joaquim Vieira, “o
episódio é um marco na história social portuguesa” e, graças a ele, Taveira
entrou “definitivamente na mitologia nacional” (cf. Expresso-R, de
14/10/1989).
Portanto, destino oscilante entre o trágico e o cómico, e
porventura injusto, já que o arquiteto Tomás, para a posteridade crismado “o
Taveira”, rubricou, além daquelas fitas escaldantes, obras igualmente polémicas
noutros domínios artísticos, v.g. no campo da arquitetura e do design de
mobiliário (fez também os cenários da SIC, em comandita com Emílio Rangel, que lhe metera
uma cunha para uma protegida sua entrar na Faculdade de Arquitetura –
cf. jornal i, de 4/10/2018). Será pouco próprio, de facto, reduzir os 85
anos de vida do arquiteto Tomás, tão intensos, tão vulcânicos, àqueles 30:01
minutos fatídicos que dura a película escabrosa, hoje disponibilizada urbi
et orbi sob o título “O Vídeo Comprometedor” ou, noutras versões, “TodoLaDentro”
(em certos sítios mais seletos da Internet, a mesma encontra-se catalogada e
arquivada como “Tomás Taveira, um grande Português” ou, quiçá na mira de
um Óscar, “Taveira: Free Solo Man Porn Video 58”). É cruel? Será. Mas é
lindo.
Pode afirmar-se, de resto, que existe uma óbvia
continuidade, ou até contiguidade, entre a arquitetura de Tomás Taveira e as
suas aventuras íntimas, gravadas em VHS. Não é por acaso que, na gíria popular,
a mais sábia de todas, a expressão
“taveirada” tanto designa os deleites da sodomia como o pavor arquitetónico,
e, em verdade, verdadinha, no caso em apreço ambos relevam de um mesmo e só
domínio, o pornográfico, aqui espraiado em modo boçal e alarve. É facto,
também, que, quando contemplamos coisas como o edifício-sede do BNU, construído
em 1989 e louvado em 1994 com uma Menção Honrosa do Prémio Valmor (!), ou a
zona residencial da Encosta das Olaias, galardoada com um Valmor em 1982 (!),
nos sentimos todos um bocadinho seviciados e estraçalhados, quando não
sodomizados, no nosso senso e no gosto, tal qual as pobres moças dos vídeos, as
quais, ainda assim, sempre consentiram naquilo, espera-se, ao contrário de nós,
cidadãos desta cidade, que fomos confrontados, entre outras bizarrias, com o
monstro fétido da 5 de Outubro sem para ele sermos achados, nem tidos. Culpa da
câmara e das vereações, é certo, que ao longo dos anos têm mostrado uma total
desprezo pela urbe que governam e pelos que nela habitam (além de revelarem uma
alarve incultura, quando não uma venalidade corrupta), e culpa do autor do projeto,
sem dúvida; mas culpa, também, do ambiente e da cultura em que o arquiteto
Taveira pôde crescer e medrar, mormente da voga pós-modernista em que dizia enfileirar,
corrente que tudo relativizou e dissolveu, assim pavimentando o caminho ao atual
reino das fake news e da pós-verdade. Com efeito, e por muito que nos
custe a crê-lo, o presente extremismo político e as suas pulsões totalitárias
são herdeiros diretos da atmosfera feérica dos anos 80 e da sua divisa, mais tarde levada ao
limite, nothing is true and everything is possible. Primeiro,
destruíram-se as noções de verdade, de objetividade, de racionalidade e, a
seguir, as distinções éticas entre o bem e o mal, o certo e o errado. E depois
surgiu Trump.
Tomás Cardoso Taveira nasceu em Lisboa, em 22 de novembro de
1938, no seio de uma família que o próprio qualifica como “muito pobre”, sendo seu pai agulheiro da Carris e a
mãe doméstica. Por esta, que lhe ensinou as primeiras letras, teria
sempre uma enorme devoção, com contornos edipianos ou assim parece, a crer no
que escreve o jornalista francês Mathieu Garrigou-Lagrange numa biografia
ficcionada do arquiteto, mas baseada em depoimentos deste e em factos reais, Le
brutaliste, de 2021 (cf., a propósito deste livro, Tiago Bartolomeu Costa,
“Cadáver esquisito de um arquiteto maldito”, Público, de 20/5/2021). O avô materno foi um dos
fundadores da Carbonária e, à conta disso e doutras tropelias, acabou morto por Salazar na célebre
Matança de Badajoz, no ano de 1936, assevera o arquiteto e nós
acreditamos nele, mesmo com as maiores reservas.
Com a infância
passada entre a Picheleira e Alcântara, Tomás cresceu, segundo o
próprio, “no meio de ciganos, de operários, de gente do mais reles que havia” e
concluiu a primária na Escola n.º 14, no Largo do Leão. Não tendo meios para
prosseguir o liceu, matriculou-se na escola industrial, com o fito de fazer
carreira na marinha mercante. Sonhava ir para a Afonso Domingues, mas a mãe
achava o ambiente escolar “de cortar à faca” e, por isso, acabou na Marquês de
Pombal, ao Largo do Calvário, onde tirou o curso industrial, com o qual começou
a trabalhar na Carris, empresa onde já estava seu pai e que, por essa via, lhe
franqueou as portas de par em par. Nessa altura, afirma Garrigou-Lagrange, aderiu ao PCP e teve a sua primeira experiência com
uma prostituta.
Em 1955, abandonou a Carris, onde era serralheiro nas oficinas de Santo Amaro, para ingressar no ateliê de Nuno Teotónio Pereira como desenhador. O jeito para o traço veio de muito novo ou, nas suas inconfundíveis palavras, “desde miúdo que desenho muito bem. Qualquer tipo de coisa.” Em jovem, como morava no n.º 2 do Largo do Leão, e como no n.º 4 morava Joaquim Pereira, um negro que fazia os cenários do Monumental e que então vivia com Helga Liné
Começou por trabalhar como moço de recados nos ateliês de
dois nomes famosos, Formosinho Sanchez e Maurício de Vasconcelos, a quem levava
os lanches e o petróleo para o aquecimento, e que o deixavam fazer “uns
desenhinhos” sem o levarem muito a sério. “Eu era um corpo estranho, era o gajo
que estava ali para afiar os lápis, para ir comprar o lanche, para atender o
telefone se não estivesse lá ninguém. Nunca me ligaram nenhuma”, coisa que
decerto o marcou e que, acima de tudo, não o fez desistir de lutar, lutar
sempre, labutando como um louco nos ateliês de Luiz Alçada Batista, Manuel
Laginha, Teotónio Pereira, Nuno Portas, Conceição Silva, trabalhos que, aliados
ao início da vida familiar – casara
com Amarílis Cristina e esta estava grávida da primeira filha –, o
fizeram retardar os estudos de arquitetura ou, como ele diz, “acabei o curso
tarde, porque não precisava de ter curso.”
Nos intervalos do trabalho e das aulas, que frequentou com
uma bolsa da Gulbenkian, ainda tinha tempo para participar, em posição
menoríssima, nas tertúlias
dos cafés Gelo e Montecarlo, onde conheceu os surrealistas e privou com
António Marta Lisboa, Mário Cesariny e Carlos Leote, entre outros. Quando se
encontrava no primeiro ano da ESBAL, foi convocado para a tropa, segundo ele
por razões políticas. Aí conheceu Herberto Hélder e Fernando Assis Pacheco, os
quais, à semelhança dos arquitetos de renome, não lhe davam particular
importância: “eles eram super-amigos e eu… Eu fui sempre um personagem menor.
Nunca fui o centro das atenções.” Um acumular de complexos e ressentimentos
sociais, e culturais, à boa maneira de Rastignac, o que talvez explique muito
do sucedido depois, na sua vida e na nossa: o triunfalismo pujante do traço arquitetónico,
que o próprio assume como “barroco”, e as suas fatuidades grotescas, de um
egocentrismo que raia o patético: “Acho que sou um grande arquiteto e sei mais
do que estes gajos todos juntos”, “Quem é que ganhou [o Prémio Pritzker]? O
Siza? Porquê? Porque o Jay
Pritzker é judeu e o Siza também”, “Tenho pena que não haja dez
Taveiras”, “O Souto de Moura não é arquiteto. É um produto do Siza. O Souto de
Moura existe porque o Siza o foi promovendo.”
Numa entrevista à Camões TV, em março de 2020, e
disponível no canal YouTube, contou um episódio revelador, a pega de morte que teve com
Nuno Teotónio Pereira, em cujo ateliê trabalhava às manhãs como
desenhador; quando lhe disse que às tardes era arquiteto no gabinete de
Conceição Silva, Teotónio não acreditou e, irritado, Tomás chamou-o de tudo.
“Para o Teotónio eu não era nada”, diz Taveira, passadas décadas, lembrando que
“quem ia para arquitetura era o filho-família”, enquanto “eu era o operário,
fazia gala em ser operário, malandrão.” Sobre o incidente, confessa que o
marcou “muito, muito, muito” e, note-se, “isto ainda me enraiveceu mais em
relação ao mundo, ainda me fez estudar mais, fazer sempre mais.”
Se todos os arrivistas odeiam a memória, até porque ela lhes
vem lembrar o lugar de onde vieram e as humilhações sofridas ao longo dos anos,
com Taveira, esse tique é levado ao extremo, o que por certo explica a sua arquitetura
de artificio e rutura, em militante desprezo pelas zonas envolventes dos
edifícios que projeta e pela sua história, e a preferência pelo estrondoso e
pelo efémero, visível até na escolha de materiais de desgaste rápido ante a
usura do tempo, como se comprova no triste estado de degradação em que se encontram muitas das suas
criações mais emblemáticas, incluindo as Amoreiras, que ele,
sensatamente, diz não ter por hábito contemplar. Lamentavelmente, uma das suas
melhores obras, a Loja de
Discos da Valentim de Carvalho em Cascais, com intervenções pop de
Rolando Sá Nogueira e de Herberto Hélder, encontra-se hoje em estado miserável,
como miserável é o estado do centro daquela pitoresca vila, outrora tão
pitoresca.
Num dos seus rebarbativos vídeos, vemo-lo a falar a
conspirar ao telefone com um mandarim académico, pois, além de praticante de arquitetura,
foi também professor da dita, na Universidade Técnica de Lisboa (também lecionou
em Los Angeles), após ter feito uma pós-graduação em Planeamento Regional e
Urbano pelo MIT. Não foi, porém, feliz como docente: “Odiei. O ambiente na universidade
é um ambiente podre, de luta pelo poder, um ambiente não-crítico, onde é
impossível falar de cultura. (…) Eu dei aulas gloriosas, em que misturava a
pintura com a escultura e com as diferentes tendências de música. Isso
fascinava-me, mas acho que nunca ninguém percebeu o que eu disse.”
Recentemente, têm perguntado por ele, outrora tão assíduo
nos lugares mundanos ou nas festas do cavaquismo, a que acorria no seu
sumptuoso Rolls. A revista Flash!, de 29/4/2018, atribui o seu
desaparecimento ao escândalo gerado pela história das cassetes, fazendo questão
de informar os interessados que as mesmas “ainda hoje estão acessíveis em sites
de pornografia.” Já a VIP, de seu lado, garante que Tomás “continua a
dar cartas no mundo da arquitetura” e que até “tem em mãos um projeto para um
novo estádio de futebol no Uzbequistão”, país onde, pelos vistos, ainda não
chegaram ecos do célebre episódio de 1989, quando, sob o título “As Loucuras
Sexuais de Tomás Taveira”, a revista Semana Ilustrada deu a conhecer ao
mundo as intimidades do autor das Amoreiras com um conjunto de mulheres que,
importa dizê-lo, foram expostas e alvo de troça por parte de uma nação inteira.
De facto, na sofreguidão do escândalo e da pilhéria esquecemo-nos de que, mesmo que as visadas tenham
consentido naquela atividade de risco, por certo não autorizaram que a
mesma fosse gravada e, menos ainda, exibida à descarada.
Tomás Taveira, naturalmente, ainda hoje não gosta de falar
do sucedido, mas a Garrigou-Lagrange adiantou um pouco sobre a sua versão dos
factos. Segundo ele, uma das raparigas filmadas pediu-lhe as cassetes para
mostrar às amigas, uma história pouco credível (noutras versões que correram na
altura, teria sido um funcionário do ateliê a descobrir e desviar os vídeos
maliciosos), e, depois, o marido dessa rapariga ofereceu a bomba ao Tal
& Qual, a troco de 20 mil contos, o qual não só não quis o negócio como
avisou o visado. Este, de resto, já deveria pressentir que aquele era um ano
aziago, pois, em janeiro do dito, um astrólogo previra que 1989 seria para ele
terrível. Após ter sido divulgado um outro escândalo, o de faturas falsas e fuga aos impostos num
contrato com o ministério da Saúde (Garrigou-Lagrange fala também de malas com dinheiro de Macau,
transportadas para o PS), Taveira terá confidenciado aos amigos que a
profecia se estava a cumprir, tanto mais que já sabia que, dois anos antes, as
cassetes porcas andavam por mãos alheias. Em agosto, contudo, e com a habitual
prosápia, proclamava ao Expresso ser “psicologicamente indestrutível.”
Pouco depois, no início de setembro, um jornalista da revista Sábado,
que acabara de publicar uma peça sobre a sua obra, avisou-o dos rumores que
corriam em Lisboa à conta de uns vídeos picantes em que ele surgia no papel
principal e, na manhã de dia 11, José Rocha Vieira, do Tal & Qual
telefonou-lhe informando-o que vira a arrepiante cassete, ou parte dela, e
pedia um comentário seu (Taveira respondeu com a truculência da praxe). À
tarde, foi contactado por Raul Ribeiro, chefe da redação do semanário O Caso,
solicitando-lhe uma entrevista sobre a sua arquitetura. Aceitou (cf. Expresso-R,
de 14/10/1989).
Mal sabia ele que o proprietário de O Caso era, nem
mais nem menos, do que André Gamboa Neves, um homem de 49 anos a quem já
chamaram “o Larry Flint
português”, dado o seu vasto currículo no mundo do material maroto, mas
não só, já que a par de publicações como Nova Star, Jornal do Amor,
Sexy Club, Sexus ou Revista Amor, também deu à estampa
títulos como Euromoda, Grande Encontro, O Caso, Agenda
da Semana, Euro Notícias, Euro Semana ou Mariana.
Começara a vida a vender sebentas e depois, nos anos 60, deu à estampa coisas
políticas, traduções da Maspero e assim, mas depois, segundo o próprio,
cansou-se de ver o seu trabalho reproduzido em fotocópias e, com as liberdades
de abril, reorientou para o porno, onde, em finais dos anos 80, comerciava algo
como 1,3 milhões de exemplares/mês e garantia estar em conversações para uma
edição portuguesa da Penthouse. Ao Expresso confidenciaria que,
tal qual o arquiteto sodomita, a sua ambição era “ser o maior”, pois “os projetos
não valem a pena quando são pequenos.”
Na posse das cassetes comprometedoras, André Neves terá
tentado chantagear Taveira. Primeiro, o arquiteto encontrou-se com Carlos
Ribeiro, da redação de O Caso, na esperança de conseguir a suspensão da
publicação da Semana Ilustrada, o novo e bombástico projeto editorial de
Neves (a revista, de facto, teria um começo enguiçado, mas não por via de
qualquer acordo, antes por causa de uma avaria nas máquinas da gráfica
Mirandela, que só conseguiram imprimir 47 mil exemplares do pasquim, muito
longe dos números idealizados por André Neves.)
Numa entrevista concedida ao Expresso-R, de
14/10/1989, André Neves contou que, por intermédio de Gonçalves Pereira, um
engenheiro com responsabilidades na Interpress, teve um almoço de negócios com
Taveira no Bananas, no dia 22 de setembro de 1989, com ambos a gravarem o
encontro às escondidas. Numa cena digna de um filme da Guerra Fria, o arquiteto
terá insistido para que Neves despisse o casaco e, logo que este o fez, um
empregado prontamente tirou-o das costas da cadeira, guardando-o no bengaleiro;
simplesmente, Neves tinha o gravador guardado no bolso das calças e registou
tudo. Porém, sentindo-se em território hostil (o arquiteto era dono do Bananas e doutras discotecas, o
Ad Lib e o Twin’s, no Porto), vendo uns “gorilas” por perto, fez abortar
o negócio. Remarcaram para o Hotel Ritz, às nove e meia da noite desse dia e
aí, estando o advogado de Taveira sentado num sofá por perto, tentaram chegar a acordo, qualquer
coisa como 36 mil contos, uma quantia avultada para a altura. Uma
vez mais, ambos gravaram o encontro e o Expresso teve acesso ao
edificante diálogo, com Neves a confessar a ambição de “vir a ser o maior
editor português” e Taveira, nos preliminares, a elogiar à larga o grafismo da Semana
Ilustrada; depois, entrados nos pormenores do acordo, o arquiteto falou de
“um magnífico deal”, mas logo a seguir irritou-se e a coisa descambou: “Onde
está a puta da cassete? O que faço para sacar a filha da puta da cassete?”, “Vinte mil contos por aquela
merda? Nem que fosse uma cassete com o Bush!” Ainda aprazaram um almoço
para finalizar a coisa, mas Taveira acabou por desistir, rejeitando a
chantagem.
Entretanto, e sem que se saiba bem como e porquê, os vídeos
começaram a circular por Lisboa, e a uma velocidade que se calcula ter sido
vertiginosa. Segundo o Expresso, num jantar
com jornalistas, Marcelo Rebelo de Sousa, então candidato à presidência da câmara de Lisboa, “passou
mais tempo a descrever deliciadamente pormenores da cassete (falsos
ou não, não se sabe), do que a abordar qualquer outro tema” (Expresso-R,
de 14/10/1989). E, no início de setembro de 1989, o Tal & Qual e o Semanário
fizeram referência ao caso, sem mencionar o nome do arquiteto, mas, a 26 desse
mês, O Diabo de Vera Lagoa publicava a sua fotografia, falando da
“pornocassete” e, a 29, O Independente dizia que Taveira estava a ser
chantageado “por causa de uma videocassete com imagens eventualmente
chocantes”, com Vasco Pulido
Valente a escrever que “o desagradável arquiteto Taveira não é uma
pessoa pública. Uma pessoa célebre não é uma pessoa pública e o que o arquiteto
Taveira faz ou não faz no seu escritório não afeta ninguém fora desse
escritório” (mas, já agora, acrescentaríamos, afetava e afetou alguém que
estivesse nesse escritório); em crónica intitulada “A aventura do Taveira”, Miguel Esteves Cardoso mostrava-se “indignadíssimo
com o caso da videocassete do sr. arquiteto e da revista do sr. André” e, pondo
o dedo na ferida, lamentava que as mulheres filmadas, a parte silenciada,
fossem, no fim de contas, as mais penalizadas por esta abominável novela.
Ainda houve um intermezzo, um tempo breve em que Taveira
julgou conseguir controlar os danos e até gracejar com o episódio. Sentado com
a mulher num camarote de Alvalade, para assistir a um jogo Sporting-Nápoles, virou-se
para Marcelo Rebelo de Sousa, na fila de trás, dizendo-lhe, em tom
audível, “olhe, aquela cassete era de muito má qualidade, mas a próxima vou
filmá-la na Edipim, e levo-a a si, que é a única maneira de você arranjar umas raparigas
jeitosas!” Marcelo não reagiu. Taveira no seu melhor, ou pior.
Aos 2
de outubro do ano de 1989, o país ficou a conhecê-lo em pelo, na capa e
em muitas páginas do n.º 2 da Semana Ilustrada, publicação que se
debruçava também sobre temas como “A SIDA invade os urinóis de Lisboa e Porto”
e “Crédito Imobiliário: sodomia fiscal.” A revista, claro, teve uma tiragem
fenomenal, 150 mil exemplares, e esgotou num ápice, sendo tal a avidez dos leitores
que, da comitiva que acompanhou Soares em viagem oficial à
Checoslováquia, chegaram a pedir um exemplar para Lisboa, mandado por telefax.
Nesse dia, no ateliê do arquiteto, todas as linhas telefónicas foram
desligadas, menos uma, por estarem congestionadas com chamadas anónimas,
portugueses na chalaça. Um ardina de Lisboa chegou a plastificar as páginas da Semana
Ilustrada sobre Taveira, alugando-as por algumas centenas de escudos, e a
revista é hoje uma peça de colecionador, vendida por 50 euros, ou mais, e assim
descrita no OLX: “revista em excelente estado, muito polémica, com artigo e
fotos sobre o escândalo das loucuras sexuais do arquiteto Tomás Taveira, as
famosas «taveiradas».”
Houve processos na justiça, a revista foi proibida, depois
pouco mais durou. Taveira assevera que o casal que lhe surripiou as cassetes
acabou condenado a ressarci-lo em 50 mil contos, equivalente a cerca de 100 mil
euros, mas abandonou o país e nunca mais pagou. Quanto a André Neves, foi
condenado no Tribunal da Boa Hora, em junho de 1990, no pagamento de 20 mil
contos, através de uma decisão de um coletivo presidido pela juíza Margarida Belo Redondo que
reconheceu o “direito à felicidade” de Tomás Taveira. O editor maldito
acabaria por fixar-se em Espanha, onde o grupo alemão Axel Springer, editor do tabloide
Bild, entre outros, o convidou para dirigir a sua filial no país
vizinho. Em 2008, ao que parece, o seu nome ainda surgiu associado ao jornal Ooh
Lá Lá, cujo título diz tudo. E, no ano seguinte, há notícias de que tinha
lançado um novo periódico, Mundo Económico, chegando a contratar
jornalistas, mas ao fim de dois meses ainda não tinha pagado salários e tudo
seguiu para tribunal (cf. Diário de Notícias, de 9/12/2009).
Além de um retumbante escândalo sexual, o “caso Taveira”
teve grossas repercussões políticas, descritas ao pormenor por Fernando Lima, à época
assessor de imprensa do primeiro-ministro Cavaco Silva (cf. O Meu Tempo com
Cavaco Silva, 2004, pp. 126ss). Nos últimos meses de 1989, refere Lima, o
governo encontrava-se debaixo de fogo, após os resultados pouco auspiciosos das
europeias de junho desse ano e com a tímida remodelação de julho, onde Cavaco
decidiu fazer entrar Dias Loureiro para os Assuntos Parlamentares, mas não
substituir os ministros mais acossados, nomeadamente o das Finanças, Miguel
Cadilhe, alvo de uma campanha de O Independente sobre uma alegada fuga
ao fisco na compra de um apartamento não por acaso sito nas Amoreiras. Nas suas
memórias (Factos e Enredos, 1990, pp. 88ss), Cadilhe conta que uma noite, após o jantar, recebeu a visita em casa de
um colega de governo, que consigo partilhou um “assunto extremamente delicado”:
“corriam rumores e calúnias contra três e quatro ministros e seus familiares, a
propósito de um escândalo…” Cadilhe fala, e com razão, de “excremento”,
aludindo ao facto de, pouco depois de a Semana Ilustrada ter divulgado
os contorcionismos íntimos de Tomás Taveira no seu escritório da Avenida da
República, a revista espanhola Interviú voltou a falar do caso, desta
feita com contornos mais graves, afirmando que o mesmo envolvia “protagonistas
da vida política e económica” lusitana e “a atual Administração Política (e
Pública) de Portugal.” A acompanhar a peça, uma fotografia de um Taveira
sorridente, ao lado do casal Miguel e Maria Antónia Cadilhe, então presença
assídua nas revistas cor-de-rosa.
A este respeito, Fernando Lima descreve os esforços do
governo para impedir a circulação da Interviú em Portugal,
os quais envolveram a ida de uma equipa da Polícia Judiciária ao país vizinho,
para recolher mais informações, e contactos do ministro da Administração
Interna, Fernando Nogueira, com o seu homólogo espanhol, bem como o envio de um
“alto funcionário governamental” a Madrid. Do lado de cá da fronteira, O
Independente mantinha a fogueira acesa, anunciando que estavam “para rebentar
escândalos em redor das figuras de Eurico de Melo, Mira Amaral, Silva Peneda e
Miguel Cadilhe.”
Na noite de 9
de novembro, à hora em que em Berlim caía o Muro, e numa conversa
privada tida em São Bento, Miguel Cadilhe apresentou a sua demissão a Cavaco, o qual, na noite do dia 10,
faria uma comunicação ao país, preparada com o auxílio de Fernando
Nogueira. Nela, “com ar grave”, Cavaco abordou “o tema geral da calúnia e da
mentira como armas de ataque às instituições democráticas e aos titulares dos
cargos políticos”, diz o próprio em Autobiografia Política II, 2004, p.
91. Esta intervenção, contudo, seria violentamente criticada por Paulo Portas
nas páginas de O Independente e pelo Sindicato dos Jornalistas, que viu
nas palavras de Cavaco uma tentativa de desprestigiar a comunicação social
perante a opinião pública portuguesa. Com a vida do governo transformado “num
inferno” (Fernando Lima), o PSD sofreria um pesado revés nas autárquicas de dezembro
de 1989 e, em 1 de janeiro do ano, Cavaco Silva anunciava uma aguardada
remodelação ministerial, com a saída de Eurico de Melo, Leonor Beleza e Miguel
Cadilhe.
Quanto a Tomás Taveira, divorciou-se e iniciou uma
humilhante travessia no deserto, a pontos de ter sido impedido de pôr os pés no Bananas pela
consultora de imagem contratada de reabilitar o nome da casa (cf. Isabel
Borges, “Euzinha contratada pelo Taveira no final de 1989?”, blogue Por
Amor, 31/7/1989). Falando com o Expresso, adotou o registo-coitadinho,
Marcelino, Pão e Vinho: “Fui rejeitado pela sociedade portuguesa, cultural e
politicamente. Em Portugal, os jornalistas não me deixam viver. Estes episódios
apagam-me como português. Sou um indivíduo arrumado. A única coisa que me resta
é o silêncio.” Das trevas regressou episodicamente, seja para projetar obras no
estrangeiro, seja para desenhar a estação de metro das Olaias, seja para projetar,
a instâncias de José Sócrates, seis dos nove estádios do Euro 2004, de que
foram construídos três, o Aveiro, o de Leiria e o Alvalade XXI, coberto de
azulejos WC, só há pouco removidos. Ainda assim, não foi tão ostracizado quanto
isso, já que, dois anos depois da borrasca das cassetes, ganhou, ex aequo com
Carrilho de Graça, o concurso de ampliação do edifício da Assembleia da
República, felizmente anulado, com a obra a ser entregue, por ajuste direto, a
Fernando Távora.
Diz que muitas das suas obras são “icónicas”, seja lá isso o
que for, mas a mais icónica de todas – e a mais perene – são, sem dúvida, as “pornocassetes” gravadas em
1987, mas só dois anos depois levadas à apreciação crítica de milhões de
espectadores, em Portugal e no estrangeiro, e por sinal no preciso momento em
que nos ecrãs estreava o filme Sexo, Mentiras e Vídeo, de Steven
Soderbergh. Discute-se ainda hoje sobre se as mulheres envolvidas, ou pelo
menos algumas delas, terão sido ou não violadas, no que à
penetração anal diz respeito (é o que sustentava André Neves e,
agora, Matthieu Garrigou-Lagrange), sendo indubitável que o foram na sua
intimidade e na sua privacidade, na sua dignidade, em suma. Debate-se, também,
a identidade das visadas, dominando hoje a tese de que não eram esposas de políticos ou de homens
poderosos, antes raparigas que o arquiteto terá conhecido na vida, na
delas e na dele, possivelmente suas alunas na Faculdade de Arquitetura,
caixeiras de lojas ou quiçá até prostitutas, sabe-se lá.
Os vídeos têm sido tratados de modo complacente e jocoso,
dando motivo a muita boçalidade, e, como sempre sucede, foram alvo de dezenas
de pastiches, recriações e apropriações, desde logo na cinematografia porno, em
Tavares, o Arquitecto Quebra-Bilhas, com Erica Fontes e Pedro Perestrelo
(filho do locutor Pedro Perestrelo) nos principais papéis, o qual, na descrição
dos produtores, conta a história de “um arquiteto que gosta de trabalhar em
cima do joelho… ou em cima do sofá ou da mesa das reuniões. O que interessa é
montar boas estruturas, sejam elas de edifícios ou de belas raparigas dispostas
a tudo. Veja, está tudo cá dentro!” Na música, cite-se “Na Cabana do Pai do
Tomás”, da banda Sitiados (refrão: “Ó Tomás, ó Tomás,
isso não se faz”) ou “Fim-de-semana em Vizela”, dos Ena Pá 2000 (“A filha da Teresa Braganza/A neta do bispo de
Beja/A roer as unhas de inveja/A secretária do Taveira/Tem um buraquinho na
peida”), devendo mencionar-se também, pela sua alarvidade, os cânticos das tunas da Faculdade de Arquitetura,
onde Taveira lecionava: “Quem é quem/Que enraba à maneira/É Taveira/É o
Taveira!” (apud João Pedro George. Dicionário Sério de Calão, Javardices e
Alarvidades, 2024, p. 97). No decurso dos seus filmes íntimos, o arquiteto
proferiu afirmações que entraram desde há muito no património linguístico
nacional, com destaque absoluto para “Está todo lá dentro!”, mas não só (v.g.,
“Ui, ca bom!”). Além das expressões “taveirada” ou “taveiresco”, o epíteto
“quebra-bilhas”, nas suas diversas declinações (“O quebra-bilhas das
Amoreiras”, “O arquiteto quebra-bilhas”, etc.), colou-se a Tomás Taveira como
uma segunda pele, e acompanhá-lo-á ad eternum, muito para lá do seu
perecimento terreno.
Em Aveiro, em janeiro de 2021, um conjunto de moradias suas
suscitou intensas críticas, com a autarquia a afirmar, imagine-se, que não lhe
competia pronunciar-se sobre a estética dos projetos (cf. Público, de
21/1/2021). Pouco depois, Taveira
colocou-se ao lado de Ronaldo na célebre “polémica da marquise”, no nº.
203 da Castilho (cf. Record, de 1/6/2021), a rua do não menos célebre
Edifício Castil, cuja autoria disputou com Conceição Silva nos tribunais. Na
mesma altura, Rui Unas anunciou que iria recebê-lo no seu programa, fazendo-o
com palavras consideradas demasiado tolerantes relativamente às “asneiras”
(sic) pretéritas do arquiteto, o que gerou indignação e obrigou Unas a engolir
o que disse (cf. Público, de 22/4/2021). Quanto ao arquiteto maldito,
diz que se mantém “hiperativo” e “hiperinformado sobre tudo o que se faz na
arte”, afirmando que, pese as mais de 80 primaveras, conserva uma “energia
total” e garantindo que não dorme mais de quatro horas por noite (até porque
tem de cuidar dos dois gatos que com ele dormem).
Hoje, os defensores da sua arquitetura dizem que é possível
separá-la do homem que a criou, e sustentam que “não se pode fazer a crítica da
arquitetura através da crítica à personalidade” (cf. Tiago Bartolomeu Costa, “A
obra e o homem: o caso Tomás Taveira”, Público, de 20/5/2021). Como
todas as máximas, esta só em parte é verdadeira, uma vez que, se há arquitetos
que têm a contenção e o bom senso de não misturar a obra com a biografia, em
Tomás Taveira, pelo contrário, tudo o que faz e diz acaba por ser, ao cabo e ao
resto, uma irrupção
fragorosa do seu carácter animalesco e em bruto (na sua conta do
Twitter, identifica-se, não por acaso, como “animal sexual”), de uma força da
natureza moldada, mas jamais amaciada, pelo convívio com políticos de baixo
nível, dirigentes desportivos e empreiteiros gananciosos. Julgando-se chefe de
banda ou orquestra, Taveira foi um peão do jogo e da teia de interesses vis e
corruptos que, vinda do anterior regime, mas aprofundada no pós-revolução,
converteu a paisagem urbana portuguesa numa das mais feias, mais
desinteressantes e mais medíocres da Europa. Os que louvam a natureza
“revolucionária” do seu pós-modernismo Free-Style, deveriam atentar melhor, com
olhos de ver, a aberração
prantada ao Saldanha, os projetos que ele tinha para o Martim Moniz ou
para a Fontes Pereira de Melo ou para a ampliação do parlamento, numa sanha
destrutiva que não poupava sequer a Baixa pombalina, que Taveira dizia não ser
intocável ou sacrossanta e, logo, também passível, ou passiva, das suas
bizarras intervenções.
Paradoxalmente, sob a capa de democraticidade do gosto – e
do apreço das classes populares pelos seus edifícios desconcertantes e nonsense
–, no discurso de Taveira sobre “fazer cidade” esconde-se muito de arrogante e
tirânico, desde logo a presunção de que só uns, os iluminados, os eleitos (por
quem? pelos construtores?), têm o privilégio de intervir na urbe de forma tão
estridente e exuberante, já que se todos o fizessem o mesmo do que ele e adotassem
um registo idêntico, com a cidade coberta de “taveiradas”, estas não teriam
impacto algum, ficando então mais patente o que verdadeiramente são, uma
ignóbil porcaria. A filosofia arquitetónica de Tomás Taveira emerge, em suma,
da mesma adleriana “vontade de poder” com que torpedeava os colegas, gritava
com os subordinados ou dominava as mulheres à sua mercê – e, pior ainda, que as
filmava aparentemente sem o seu consentimento. O evidente prazer
com que as subjugava e fazia sofrer – muito provavelmente, o maior
gozo que tirava de tudo aquilo – define-o como ser humano, mas também define o
país onde pôde medrar até se tornar aquilo que é, ou foi, um homem sem
qualidades.
Fonte: Diário de Notícias, 2 de junho de 2024
Comentários
Enviar um comentário