As memórias gráficas da mais amada 'Gina'
Nos
anos 70 e 80 o ioiô e a Spectrum ferviam nas mãos dos adolescentes. A ‘Gina’ também.
Entre 74 e 2005, ano em que gemeu de prazer pela última vez, Mário Gomes, das
edições Pirâmide, traduziu a revista pornográfica mais popular em Portugal.
Foram 196 números quentes que revolucionaram o País dos brandos costumes. Para
eles. E, sim, também para elas
Mário Gomes nunca foi tão fotografado como para esta
história. Mais flashes, 'só no dia do meu casamento', garante, entre risos. A
insistência da lente faz sentido, porque as recordações que enchem a cave do
prédio na Buraca, onde pouco funcionam as edições Pirâmide, escrevem-se com
imagens. Muitas e bem explícitas. 'Ainda hoje, não deve haver um homem ou
mulher com mais de vinte anos que não saiba o que é a ‘Gina’'. O esclarecimento
sobre a popular revista pornográfica abona assim tanto entre as senhoras? 'Elas
consumiam e muito! Por norma os homens não têm pudor em comprar, mas alguns
metem entre o jornal. As mulheres compram com uma revista. No Rossio e em Santa
Apolónia mantinha contacto com os vendedores. Vendiam-se milhares a senhoras
que estavam de passagem.'
Para os desatentos ou fiéis depositários de ignorância
crónica, aqui vai a apresentação. A ‘Gina’, de apelido ‘Histórias Sexy
Internacionais’, foi instituição da literatura porno, marco da libertação de
costumes, ícone de uma geração, manual de iniciação a uma vida nada banal para
muito jovem na flor da idade e sucedâneo de aventuras idas para gente entradota,
cartilha picante, sempre no fio da navalha entre a mais conspurcada brejeirice
e calinadas nos diálogos e uma rebuscada prosa com laivos de erudição. E foi o
pavor de todas as Virgínias e Reginas do País, atreitas a associações
galhofeiras por parte das línguas mais desabridas. Trocado por miúdos, ou
melhor, por adultos, a ‘Gina’
foi a ‘Anita’ dos crescidos – ou de todos os que cresceram com a sua
leitura. A ressalva é que até a viajada ‘Anita’ ficava aquém dos périplos da
‘Gina’. A ‘Gina’, tal como as meninas más, ia para todo o lado.
Faz em julho três anos que deixou de ser editada. Hoje, é um
vestígio retro dos tempos que já lá vão. Um kitsch bibelô ressuscitado, qual
sabonete Ach Brito ou pasta medicinal Couto que sobrevive sob a forma de culto.
Provando que há quem duvide com todas as ganas que fechou atividade, de vez em
quando, 'homens e mulheres que querem ser ‘intérpretes’ da ‘Gina’ ainda mandam
para aqui o curriculum com fotos'. Impossível. Que se saiba, os modelos eram
estrangeiros e, como dizem as bocas largas de quem se cruza com um exemplar
antigo: 'algumas já são avós e ainda aqui andam nas capas!'
No escritório da Buraca nunca se fizeram castings para atores
porno, apesar da estética da ‘menina do calendário’ dominar a decoração. Mário
traduzia os hilariantes recortes literários. Coisa 'corriqueira', desvaloriza,
sem empolgamentos. Ao início levava um dia por revista. O irmão criticou a
minúcia. Pediu que aliasse o literal com o improviso. E Mário melhorou a média.
Cinco a seis horas de trabalho por cada ‘Gina’. 'Em alguns casos era preciso
criatividade, quando sobrava espaço depois de traduzido de francês ou do
inglês. Lá saía um bocado ordinário, mas é disso que o povinho gosta!'
Povinho que é como quem diz. Democrático como poucos, o sexo
convence todos os estratos sociais. E assim a senhora dona ‘Gina’ chegava a
todos. Era de todos. E de ninguém. Sacudia-se a água do capote para o primo, o
tio ou o vizinho quando a vergonha de a ter entre mãos suplantava o tamanho da coleção.
'Uma das primeiras era uma polícia alemã a multar um gajo num parque de
estacionamento. E pronto, lá terminava em amor!' Ai, tanto eufemismo
estacionava nesse parque...
A ‘Gina’ veio ao mundo português no ano da liberdade. Entre setembro e outubro de 1974 foram publicadas as primeiras quatro revistas. Custava 5% do ordenado mínimo nacional, 30 escudos. Rapidamente, galgou para os 50. 'Começou a ser publicada pela Palinex, editora do meu irmão mais velho, nas Vendas Novas, onde tínhamos as oficinas gráficas'. Acácio Gomes, já falecido, tornava-se o 'pioneiro das revistas porno em Portugal'. Homem de faro apurado, 'fura-vidas que podia ter sido magnata', qual Hugh Heffner lusitano, importou da Alemanha um negócio da China, diretamente da feira do livro de Frankfurt. 'A revista alemã tinha o mesmo nome e grafismo. Comprámos os direitos com fotolito e tudo.'
Os números espelham o fervor pela matéria que a ditadura sem
libido aplacava. 'Venderam-se uns 150 mil exemplares de cada um dos primeiros
quatro números. Foi a primeira revista pornográfica com textos em balão e acho
que a única. Os primeiros números foram publicados ao mesmo tempo em Portugal e
na Alemanha.'
A pornografia chegava até então às curiosas mãos nacionais
de forma relinchante, mas silenciosa - pela porta do cavalo. 'Uma polícia do aeroporto pedia a um
piloto para lhe trazer exemplares do Norte da Europa para dar ao namorado.
Custava uma fortuna'. Em 58 nem as anedotas com biquínis venciam a
prova da censura. Mas a fome deu em fartura. 'Tudo o que era erótico ou
pornográfico era impossível antes do 25 de Abril. Depois, tornou-se uma
debochice autêntica. Havia revistas da ‘Gina’ expostas na rua, em qualquer
estação. Passou-se do oito para o oitenta, ou melhor, para o 800!'
As páginas escancaravam-se mais ainda do que a ousadia da rainha dos títulos, que rendeu boa maquia à editora. Mário não consegue precisar o volume de escudos, mas de uma coisa se lembra. 'O meu irmão apetrechou a oficina com máquinas à custa da ‘Gina’ e das outras!' Confirma-se. ‘Gina’ não deixava os créditos por mãos alheias e fazia tudo, até emparelhar com outras publicações da casa, nada obscenas. Menos trabalhar para aquecer. 'Publicámos banda desenhada, do ‘Texas Jack’
ao ‘Homem Aranha’. Fomos os primeiros a publicar comics
americanos em Portugal. Fomos pioneiros na fotonovela'. E ainda livros de
cowboys e de culinária. Obras infantis e para pintar. Mais tarde, banda
desenhada erótica vinda de Itália. O filão era mesmo este.
Um ano e meio depois dessa novidade, de sua graça ‘Gina’, o ‘boom’ dos conteúdos explícitos. 'Chegou a haver uns 10 a 15 títulos mensais'. Como a rival ‘Tânia’.
A própria Pirâmide investiu no segmento. Chegou a deter seis títulos com conteúdos semelhantes, da ‘Top Sex’ à ‘Weekend Sexy’. Tanta concorrência resultou madrasta para a infatigável ‘Gina’. A estocada final chegou com o advento da internet, 'e do famoso canal 18'. A pornografia ficou à distância de um excitante clique.
Os iniciais milhares de exemplares vendidos decaíram para
1500 nos últimos anos. O declínio chegou à fase do ‘pacote poupança’ que
empurrou a ‘Gina’ para as ruas da amargura. 'Vendiam-se 10 ao preço de cinco.
Há muitos colecionadores que escrevem para cá a pedir números em falta.'
Mário, filho de minhotos, um de cinco irmãos, deitou mãos ao trabalho com apenas 11 anos. Entrou para a editorial Íbis como moço de recados, onde o irmão mais velho era chefe de escritório. Descobriu os primeiros números da norte-americana ‘Hustler’,
concorrente da ‘Playboy’ em terras do puritano mais fajuto
de todos os tempos: o tio Sam. O mano Constantino também se ligou à área
editorial.
Em 1965, Acácio, Roussado Pinto e Alfredo Silva fundavam a
Palinex. 'Estive sempre com eles, desde 58, neste ramo'. Em 74, deitavam mãos à
‘Gina’. Em 1980, os irmãos Acácio, Mário e Constantino montavam as Edições
Pirâmide e transferiam a matriarca das revistas porno para o Carmo, em Lisboa.
Depois, mudaram-se para a cave da Buraca juntamente com outras publicações que
celebrizaram a casa, como as revistas de crochet e ponto de cruz, os manuais de
tarot ou os cromos de futebol. Menos melindrosas do que a agitadora ‘Gina’. 'O
meu irmão foi condenado uma vez a uma multa de 350 contos, o que em 79 era
muito. Um padre viu as
revistas em Santa Apolónia e fez queixa'. Não é para menos. O
hábito, em pele de fetiche, desfilou muitas vezes na ‘Gina’, rivalizando com
enfermeiras, hospedeiras e outras.
Em Chelas, onde ainda funciona o armazém da Pirâmide,
sobrevivem cerca de 150 mil exemplares da ‘Gina’. As edições mais recentes vêm
em invólucro de plástico. Forma inovada, o conteúdo de sempre. 'Em dois anos
destruo aquilo tudo. Cada coisa tem a sua época. Ainda cá temos o ponto de cruz
e o livro de S. Cipriano. Porque continuam a haver bruxos!' Tendo em conta que
também continua a haver sexo, talvez a ‘Gina’ merecesse melhor sorte.
Histórias internacionais em
196 números
Mário Gomes descobriu o primeiro número da revista numa das
gavetas do irmão Constantino. Uma ‘Gina’ bem descolorada, 34 anos depois. Não
era a primeira edição. Atesta-o o preço de capa, 50 escudos, vinte escudos mais
do que a inicial. A procura foi tanta que a inflação não demorou. A ‘Gina’
suspirou pela última vez no n.º 196.
'És muito linda'
Faz em julho três anos que a ‘Gina’ deixou de ser publicada. Refundidas em alguns quiosques, aqui e ali na internet, nas mãos de alfarrabistas ou de particulares, ainda é possível descobrir exemplares antes de ligar para as edições Pirâmide. O culto sobrevive. A banda ‘The Great Lesbian Show’ veste a camisola da ‘Gina’ - literalmente - em concertos.
A publicidade revivalista de trazer por casa não fica por aqui. Os Ena Pá 2000 usaram uma das imagens da célebre revista na capa do álbum ‘És muita linda’. A lenda continua a dar música.
Fonte: Correio da Manhã, 5 de maio de 2008
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