"É só uma questão de tempo até que a sorte da Humanidade acabe": Israel e EUA lançaram um "ataque ilegal" que arrisca ter um "efeito oposto"

Killer Elite (2011)

Há cinco países que têm direito a ter armas nucleares e que não querem que outros as tenham. Mas este jogo perigoso tem muito mais a esconder e novos participantes a querer arriscar

Dois países com armas nucleares lançaram um “ataque ilegal” para impedir que um outro tenha acesso a armas de destruição maciça, mas podem ter desencadeado um efeito perverso ao visar o programa nuclear do Irão.

E esse é um perigo real na ótica de Rafael Seidel, professor na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) e que tem obra publicada sobre o armamento nuclear. À CNN Portugal, o académico alerta para a possibilidade de a ação conjunta de Israel e Estados Unidos ter o “efeito oposto” ao pretendido.

“Embora esse tipo de ação possa dissuadir alguns países que pretendam desenvolver armas nucleares, também pode, eventualmente, ter o efeito oposto, estimulando-os a procurar esse armamento como forma de dissuasão”, aponta o autor de um artigo científico que versa sobre a “Paz pelo desarmamento nuclear”.

E esta hipótese ganha mais força num “sistema internacional em que o uso da força ocorre à revelia do Direito Internacional”, aponta Rafael Seidel, que lança várias dúvidas sobre a legalidade deste ataque.

Dúvidas que a Campanha Internacional para a Abolição de Armas Nucleares (ICANW) não tem: de acordo com as respostas dadas à CNN Portugal, esta organização entende que as operações militares de Israel e Estados Unidos representam um “ataque ilegal” e não são uma forma viável de lidar com a possibilidade de o Irão vir a ter um arsenal nuclear, defendendo que é pela lógica do Direito Internacional que a questão deve seguir.

Rafael Seidel lembra que só em dois casos específicos é que este ataque poderia ser entendido como legítimo, sendo que nenhum dos dois se verificou. “O uso da força entre Estados é uma exceção no Direito Internacional, sendo geralmente proibido pela Carta das Nações Unidas, salvo em poucas hipóteses, como a autorização do Conselho de Segurança (artigo 42.º) ou a legítima defesa (artigo 51.º)”, aponta o professor universitário, referindo que a tese israelita de uma “autodefesa preventiva” é “bastante controversa e normalmente não encontra amparo no Direito Internacional”.

Nuclear, um jogo perigoso

Este ataque coordenado entre Israel e Estados Unidos vem aumentar a tensão e arrisca fazer crescer a instabilidade regional e global, avisa o professor da UNILA, frisando que se torna essencial “fortalecer os mecanismos internacionais existentes para a resolução pacífica”.

Para a ICANW, o ataque não só não previne a proliferação de armas nucleares como coloca em risco a vida de civis - contam-se mais de 900 mortos naquilo a que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, chamou “Guerra dos 12 Dias”.

“Israel, Estados Unidos e Irão devem juntar-se sem demoras ao Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares (TPAN). Para Israel e Estados Unidos, o TPAN permite que Estados com armas nucleares se juntem e depois verifica o desmantelamento das armas nucleares num período de 10 anos. Para o Irão, exige que todos os Estados atualizem os seus níveis de segurança nuclear”, diz a ICANW, que aponta este tratado como uma ferramenta essencial.

Uma ferramenta essencial, sim, mas que não foi ratificada por nenhum dos nove Estados com armas nucleares. Mas o problema é maior: se olharmos para o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), quatro desses países não fazem parte, enquanto os outros cinco gigantes nucleares estão autorizados pelo documento a ter esse tipo de armamento. Entre os que estão fora está Israel, que nunca assinou o acordo que tem como objetivo controlar o armamento nuclear.

Armas nucleares (ICANW)

Distribuição de ogivas nucleares por país, de acordo com a ICANW

Na prática, Israel e Estados Unidos querem fazer com que o Irão cumpra as regras de um jogo no qual também estão a infringir as regras. Por um lado, Israel não faz parte de qualquer tratado e esconde totalmente a verdadeira dimensão da sua capacidade nuclear. Por outro, os Estados Unidos não dão total acesso às agências independentes para que seja feita a verificação do seu arsenal.

E é aí que Rafael Seidel vê alguma legitimidade do lado iraniano, que não percebe porque é que não pode ter o que os seus inimigos já têm. No caso do TNP, o Irão acaba de ganhar argumentos para vir a deixar o tratado, já que o artigo X contempla uma situação como a atual. “Cada parte tem, no exercício da sua soberania nacional, o direito de denunciar o Tratado se decidir que acontecimentos extraordinários, relacionados com o assunto deste Tratado, põem em risco os interesses supremos do país”, pode ler-se.

Na prática, se o Irão alegar que está em causa a sua soberania nacional, há automaticamente legitimidade para sair do TNP e deixar de ter quaisquer obrigações legais de cumprir com a palavra de que não vai ter um armamento nuclear.

“Os acontecimentos recentes poderiam reforçar o convencimento iraniano de que possui fundamentos que se enquadram na hipótese prevista no artigo X, procurando justificar o procedimento de retirada - o que, caso concretizado, representaria um enfraquecimento do regime internacional de não proliferação”, aponta Rafael Seidel.

“Do ponto de vista do Direito Internacional, a razão principal pela qual o Irão não pode possuir ou desenvolver armas nucleares está no facto de ser parte do TNP”, reforça.

A ICANW avisa que a eventual saída do Irão do TNP começa por ser perigosa para a própria República Islâmica, já que as nações nucleares começam por ser ameaças para si mesmas. “A saída do Irão do tratado não vai contribuir para a sua segurança - pelo contrário, vai desencadear repercussões punitivas da comunidade internacional”, indica a organização.

Palavras que talvez tenham em conta as repetidas ameaças de Donald Trump, que já deixou bem claro que não chega destruir a capacidade do Irão de fabricar armas nucleares - o que até poderá nem ter acontecido.

“Os países que possuem armas nucleares não só estão a ameaçar-nos a todos, como também o fazem por sua conta e risco - é só uma questão de tempo até que a nossa sorte acabe e as armas nucleares voltem a ser utilizadas”, acrescenta a ICANW, lançando um pedido quase utópico, mas necessário: que se acabem com os arsenais nucleares.

Apesar de haver menos armas, as que existem são mais poderosas

Há um caso anterior com algumas semelhanças. A Coreia do Norte fez parte do TNP mas decidiu-se pela sua saída unilateral em 2003, quando já estava à frente do país o indomável Kim Jong-il - que avançou de forma decisiva para o desenvolvimento do programa nuclear do país, anunciando a construção da primeira bomba apenas dois anos depois.

E isto mostra as “limitações do regime em impedir a proliferação quando um Estado opta por se desvincular” do TNP, sublinha Rafael Seidel. Em último caso, o Irão pode agora encontrar uma razão jurídica para deixar de cumprir quaisquer normas internacionais e avançar de forma decisiva com o seu programa nuclear, ainda mais quando se percebe, segundo informações avançadas pela CNN, que os ataques dos Estados Unidos não terão tido tanto efeito assim no desmantelamento da investigação iraniana.

“Essa possibilidade torna-se ainda mais preocupante diante do atual cenário internacional, marcado pelo arrefecimento de importantes tratados bilaterais de controlo de armas nucleares, principalmente no contexto entre Rússia e Estados Unidos, pelo aumento da retórica de ameaça nuclear e pela modernização em curso dos arsenais nucleares por parte da maioria dos países que detêm essas armas”, reforça o professor universitário.

O perigo existe, portanto, em duas vertentes: países como Coreia do Norte, Paquistão ou os outros sete podem fazer uma corrida ao armamento nuclear, enquanto países como o Irão podem ver aí legitimidade para avançarem mesmo com os seus próprios programas.

A ICANW assume preocupação com o tema, mas aponta o dedo a Estados cuja ratificação do TNP dá maior responsabilidade. “O tratado está a ser minado por alguns dos seus membros, como fica demonstrado pela retórica de Estados como de França, Alemanha e Polónia de partilharem práticas nucleares”, diz a organização, que também não se esquece dos falhanços de países como Israel, Índia, Paquistão ou Coreia do Norte, que não fazem parte do tratado e têm armas nucleares.

É nesse sentido que Rafael Seidel lembra que o que Irão se prepara para fazer o que só aconteceu uma vez. Foi a Coreia do Norte, precisamente em 2003. Ainda que este continue a ser “um dos principais pilares” para limitar a proliferação de armas nucleares, o professor universitário assinala que não chega. É que, apesar de haver menos armas, as que existem são mais poderosas.

“Esta espécie de arma de destruição em massa vem passando por avanços tecnológicos que potencializam, em muitas vezes, a sua capacidade destrutiva, quando comparadas às bombas lançadas sobre o Japão. Logo, a mera redução ou controlo da proliferação não é suficiente para mitigar os riscos inerentes que apresentam para toda a Humanidade”, avisa o professor universitário.

O problema pode estar, em parte, no precedente, uma vez que países que tenham as atuais ambições do Irão - que já foram em tempos da Coreia do Norte - podem sempre alegar que Estados Unidos, Rússia, Reino Unido, França e China não cumprem totalmente o TNP, cujas obrigações “foram estabelecidas a partir do que se costuma chamar de uma ‘grande barganha’”, acrescenta Rafael Seidel.

Um acordo em que aqueles cinco países se comprometiam perante os outros a não transferir armas nucleares para outros Estados, caminhando até no sentido do desarmamento dos seus próprios arsenais. Não só a segunda não aconteceu como é sabido que há países terceiros que têm ogivas nucleares de Estados Unidos e Rússia.

Por outro lado, os países que ainda não tivessem armas nucleares tinham a obrigação de abandonar essa opção. Era uma “obrigação legal” entre ambas as partes, frisa Rafael Seidel. Só que se uma parte não cumpre totalmente o acordo, a outra sente-se mais legitimada para fazer o mesmo.

À luz de uma escalada armamentista, a ICANW aponta a Colômbia como exemplo. O país sul-americano ratificou finalmente o TPAN, a 16 de junho, já depois de Israel ter lançado a operação contra o Irão.

“As armas nucleares não são armas de nações responsáveis, mas armas ilegais detidas por uma minoria no mundo”, completa a ICANW, que apela ao desmantelamento total dos arsenais nucleares.

Fonte: CNN Portugal, 26 de junho de 2025

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