Orações em latim e casas cheias de filhos: a ascensão do movimento "trad" nos EUA
Perry Mason
(1957-1966) – Rebecca Welles
Um
movimento mais tradicionalista nos Estados Unidos, que defende um regresso a
valores familiares antigos e à vida rural, cresce entre jovens adultos
cristãos, mesmo que desafie normas contemporâneas de género e modernidade
Ao entardecer numa quinta em Nova Iorque central, Mike e
Jenny Thomas preparavam o jantar com os filhos, Edith, de cinco anos, e George,
de três, a tocar a campainha com entusiasmo. Sentados à mesa, recitaram uma
oração em latim antes de fazer a bênção sobre a refeição, num ritual que
reflete a religiosidade profunda da família.
Há pouco mais de uma década, Mike
e Jenny eram democratas urbanos de ideias progressistas. Compravam
em mercados locais, liam sobre psicanálise e participavam em hortas
comunitárias. Mas sentiam uma frustração e uma insatisfação que os levou a
imaginar uma vida rural mais simples e espiritual, conta o The Guardian.
Hoje, gerem uma quinta onde Mike trabalha a
terra, estuda filosofia cristã e cultiva uma ligação quase mística com o
ambiente.
A conversão ao catolicismo conservador trouxe mudanças
radicais na vida quotidiana da família. Jenny chegou a queimar livros de teoria crítica e
filosofia de esquerda, enquanto Mike defende um modelo familiar em
que o homem sustenta a família com um único rendimento e a mulher se dedica ao
lar e aos filhos. Este ideal reflete-se em escolhas como a educação doméstica,
que consideram mais personalizada e integral do que as escolas públicas locais.
O casal integra um movimento mais amplo, o “trad” (de
tradicionalista), que rejeita o mundo moderno em favor de uma vida centrada em Deus, família e terra. Muitos
aderentes veem a vida urbana e tecnológica como opressiva e ilusória,
preferindo comunidades rurais autossuficientes e afastadas da economia de
mercado dominante. Redes sociais e blogs tornaram-se canais para partilhar
experiências e instruir outros interessados num estilo de vida semelhante,
embora nem todos procurem notoriedade.
A pandemia impulsionou este movimento,
expondo vulnerabilidades nas cadeias de abastecimento e no sistema educativo, e
levando famílias a valorizar a autossuficiência e o apoio comunitário. O “trad”
atrai não apenas católicos conservadores, mas também protestantes, que combinam
práticas rurais com valores espirituais rigorosos. Alguns aderentes vão mais
longe, adotando posturas intencionalmente anacrónicas, como evitar transportes
motorizados e limitar despesas ao mínimo.
Apesar do romantismo associado à vida tradicional,
especialistas alertam que a idealização do passado pode ser enganadora.
O modelo de “homem provedor, mulher dedicada ao lar”, típico dos anos 1950 nos
EUA, nunca foi universal e esteve muitas vezes ligado a desigualdades e
vulnerabilidades para as mulheres. A historiadora Stephanie Coontz lembra que,
em épocas passadas, mulheres casadas podiam ficar presas em matrimónios
abusivos devido à falta de autonomia económica.
As famílias "trad" reconhecem as dificuldades e
frustrações que acompanham este estilo de vida. A vida rural exige trabalho
físico intenso, gestão de animais, produção própria de alimentos e tempo
limitado para lazer. No entanto, muitos consideram estes desafios uma
oportunidade de fortalecer vínculos familiares, desenvolver disciplina e
transmitir valores espirituais às crianças.
Fonte: Sapo 24, 30 de agosto de 2025

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