O Panótico 2.0 do Cairo (1)
Outland (1981) - Sean Connery
A história e o presente da vigilância estatal no Egito.
Com cerca de 95 a 99% da população concentrada em menos de
5% do total das terras, a cientista política Amy Holmes observa, com razão, que
"é seguro dizer que o povo egípcio está, quase sem exceção, sob os olhos
vigilantes do estado".
Baseando-se na antiga tradição policial do califado islâmico
de Bassassin (espiões secretos), o moderno estado egípcio desenvolveu
uma infraestrutura de vigilância e recolha de informações, penetrando na
maioria das camadas da sociedade urbana. Após invadir o país em 1882, os
administradores coloniais britânicos assumiram aquele sistema e modernizaram-no,
tornando-o conhecido como o Olho da Cidade. Tal rede de vigilância,
naturalmente, dependia de recursos humanos.
As capacidades de vigilância eletrónica do estado egípcio
receberam um relativo impulso após o golpe dos Oficiais Livres em 1952. O novo
regime republicano procurou a ajuda da CIA e, mais tarde, do KGB, utilizando a
tecnologia mais recente disponível na época para realizar escutas telefónicas.
Oficiais de inteligência foram enviados para treino no estrangeiro e não
pouparam despesas na compra do know-how e hardware necessários.
No entanto, a vigilância dos espaços públicos continuou a
depender fortemente de informadores humanos, agentes infiltrados e polícias
uniformizados destacados nas ruas. A revolta de 2011, no entanto, provou ser
um ponto de viragem. Os serviços de segurança desgastados apressaram-se a
desenvolver o seu arsenal eletrónico. Essa tendência disparou após o golpe de
2013, à medida que o aumento da presença militar e policial em áreas públicas
ao longo das províncias do Vale do Nilo e em outros lugares é cada vez mais
acompanhado pelo aumento da monitorização eletrónica em massa da população.
Tanto online como offline, o regime de Abdel Fattah al-Sisi
expandiu vastamente a vigilância eletrónica na sua busca por esmagar a
dissidência e garantir que a população permaneça sob estrito controlo.
O olhar ininterrupto do Estado
O interesse das instituições do aparelho repressivo egípcio
na tecnologia de reconhecimento facial e vigilância em massa atingiu o pico
após o golpe, e em abril de 2015, foi estabelecido o Comité Nacional Permanente
de Coordenação de Segurança do Sistema de Câmaras de Vigilância em Vídeo para coordenar
a monitorização de CCTV em todo o país. Presidido pelo Vice-Ministro do
Interior para Sistemas de Comunicação e Tecnologia da Informação, o comité
inclui representantes da Inteligência Militar (MI), Serviço de Inteligência
Geral (GIS), Segurança Interna (HS) e várias agências e ministérios civis. É
responsável por supervisionar a instalação de câmaras CCTV em todas as
províncias e ligar a sua transmissão visual numa rede nacional, acedida em
conjunto pelos serviços de segurança.
Seguiu-se uma série de leis e decretos para impor a
instalação de câmaras de vigilância dentro e fora de lojas comerciais,
instituições estatais, locais de trabalho e instalações educacionais - em suma,
praticamente qualquer espaço público existente nos centros urbanos lotados. O
governo também especificou as capacidades técnicas das câmaras de vigilância e
o período de tempo necessário para a retenção das imagens de vídeo.
Além disso, em agosto de 2015, o Ministro dos Awqaf
(Doações Religiosas) anunciou um plano nacional para monitorizar todas as
mesquitas do país. De acordo com o plano, câmaras de CCTV serão instaladas nas
entradas e nos cantos de cada mesquita para monitorizar a área externa. Além
disso, serão instaladas câmaras no interior para "monitorizar os imãs,
trabalhadores, bem como as ideias, ensinamentos religiosos e sermões de
sexta-feira pregados, para garantir que estavam de acordo com o pensamento do
ministério e o sermão unificado".
Os espaços públicos civis estão principalmente sob o olhar
do Ministério do Interior (MOI) e do GIS. O Setor de Sistemas de Comunicação e
Tecnologia da Informação do MOI desempenha o papel central nessa operação,
conforme estipulado pelo decreto de 2015. Os seus funcionários inspecionam
regularmente os diferentes locais designados. Os novos megacomplexos prisionais
construídos em Wadi al-Natron (aproximadamente 100 quilómetros a noroeste do
Cairo) e Badr (65 quilómetros a leste do Cairo) estão todos cobertos por câmaras
de CCTV importadas dos Estados Unidos e possivelmente de Taiwan. O GIS, por sua
vez, tem lidado com as instalações de CCTV no setor educacional - campus
universitários, dormitórios e salas de aula do ensino médio durante as provas
finais - e praças públicas.
A segurança e vigilância de instalações militares, quartéis
e instituições é da responsabilidade da MI e da Polícia Militar. O exército
também opera câmaras de vigilância ao longo da fronteira com Gaza. Mas esse não
é o único interesse dos altos comandantes - desde cedo, o exército começou a
procurar e importar tecnologia de vigilância e reconhecimento facial de vários
países, como os EUA, Alemanha, França, Ucrânia, Coreia do Sul, China e outros.
Em 2021, a Organização Árabe para a Industrialização do exército orgulhava-se
de produzir as "primeiras câmaras CCTV 100% fabricadas no Egito" para
responder à crescente procura no mercado local.
Estes esforços de vigilância em massa não são
supervisionados apenas pelo aparato repressivo. Outro jogador vital é o
Ministério do Desenvolvimento Local, o braço executivo do Estado na
administração das autoridades provinciais, conselhos locais, lojas, licenças
operacionais, serviços públicos (água, eletricidade, esgotos, etc.) e muitos aspetos
relacionados à vida diária.
O ministério foi criado em 1999 e o seu primeiro ministro
foi o major-general Mustafa Abdel Qader, antigo diretor da Polícia de Segurança
do Estado (SS) que dirigiu a agência no início da Guerra contra o Terror, na
década de 1990. A maioria dos ministros que se seguiram a Abdel Qader provêm do
aparelho repressivo. Hisham Abdel Ghani Amnah foi um antigo major-general da
Guarda Republicana. Mohsen al-Nu'mani e Abdel Salam Mahgoub foram generais
importantes tanto nas forças armadas como no SIG. Adel Labib e Mahmoud Shaarawi
tinham sido generais da SS. Ahmad Zaki Abdin e Abu Bakr al-Gindi tinham sido
generais do exército e serviram como diplomatas nos EUA. Além disso, Abdin foi
mais tarde nomeado por Sisi para dirigir o projeto da Nova Capital
Administrativa.
Para além de impor a instalação de CCTV em todas as lojas, o major-general Amnah, na sua qualidade de ministro do Desenvolvimento Local,
emitiu um decreto no final de 2022 que enumera 83 atividades comerciais cujas
licenças de funcionamento deviam exigir autorizações de segurança.
Anteriormente, a maioria apenas necessitava de licenças de instituições civis.
A longa lista inclui praticamente todas as lojas, pontos de venda e empresas
ligadas a qualquer aspeto imaginável da vida quotidiana de um cidadão,
garantindo assim a securitização de todos os espaços públicos. O ministério -
especialmente sob o mandato de Shaarawi e Amnah - tem assumido a liderança na
implementação agressiva de campanhas de demolição de edifícios, juntamente com
o aparelho repressivo, tanto nas cidades como nas pequenas localidades,
emergindo assim como um instrumento que permite transformar qualquer terreno
habitado num "campo militar perfeito" quase foucaultiano.
Fonte: Rosa Luxemburg Stiftung, 13 de agosto de 2023
Assustador. E já a seguir, no Ocidente.
ResponderEliminarO Galvão por acaso não estaria interessado em escrever, de vez em quando e sem stress nem compromissos, uns textos para o ContraCultura? Estou a levantar o projecto sozinho (e a meio gás porque tenho outra profissão) e preciso desesperadamente de colaboradores... Não posso, por enquanto, pagar nada, porque o Contra não tem receitas (e também ainda não tem grandes audiências, na verdade - cerca de 5000 visitas por mês), pelo que percebo perfeitamente que não esteja interessado.
ResponderEliminarObrigado.
Cumprimentos.
Paulo Hasse Paixão
hassepaixao@yahoo.com
Tinha ficado espantado com o desaparecimento da contestação no Egito, depois daquelas cenas de praças cheias de gente. Agora percebo um pouco melhor como o esquema para evitar a contestação é montado. Um esquema semelhante está montado no Ocidente livre. Também há CCTV por todo o lado, câmaras prontas a ser usadas nas erupções de protestos. Por enquanto ainda há o canto da sereia da proteção de dados, mas isso esfuma-se diante da dita defesa da ordem pública, como sucede volta e meia em França.
EliminarO ContraCultura é obra de uma só pessoa? Pensei que fosse um coletivo. De facto, é muito trabalho para um homem só. Quanto a escrever, não creio que tenha músculo intelectual para tal. Atualmente, a quantidade de informação que temos de processar para uma visão lúcida é gigantesca que requer muita dedicação, disciplina, autocontrolo e sacrifício quase budista.
Atualmente, o controlo social é feito, em primeiro lugar, através da informação. Como há o free speech, ela não é escrutinada e proibidas as partes lesivas, como no tempo de Salazar. Antes, é injetado no espaço público mediático uma catadupa de informações contraditórias, misturando verdades e mentiras, que o consumidor final escolhe as que mais se adequam às suas opções políticas, ou preferências de outro tipo qualquer, para criar a sua visão do mundo.
Vimos isso com o Jack Teixeira. A forma de anular a informação vazada foi juntar-lhe outras e sugerir mão de Putin no incidente. As consequências morreram logo.
Ou no caso do SARS-CoV-2. Como os americanos estão em guerra com a China – por enquanto branda – não é possível uma visão clara sobre o assunto. O que temos é os serviços secretos plantando informações através dos jornalistas selecionados para consumo popular, para “construir o inimigo”, no sentido de Umberto Eco. Quando a guerra estalar, se estalar, a opinião pública está formada. Por enquanto, Biden está a criar a legislação, avançando a produção de armamento e autonomização da economia americana face ao comércio asiático, para quando vier o chamamento às armas, ter a América protegida do impacto.
Outra figura é Jens Stoltenberg. Colabora com os espiões americanos desde os anos 70, desde a guerra do Vietname. Não sei que faria ele, provavelmente recolhia informações entre os movimentos antiguerra ou propagandeava o sonho americano na Europa. No fim da década ele era jornalista. Uma profissão muito cobiçada pela inteligência americana para pôr na sua lista de pagamentos.
Antigamente, ainda escrevia para o blogue. Agora, optei por colocar notícias na ótica da manipulação operada pelos meios de comunicação. Como o jornalismo se tornou pura sabujice. Vejo TV de boca aberta. Há dias, vejo de madrugada a notícia de Elizarov como novo comandante do Wagner. Só aparecia num único site, por acaso russo. Pergunto à Inteligência Artificial do Bing se o site é credível. Ela responde que não, que já tinham publicado algumas petas. O próprio site fala de Elizarov apenas como hipótese não confirmada. Pois, quando vou jantar jornalistas e comentadores faziam uma festa. Já não havia dúvidas. É Elizarov.
Nisto se tornou o jornalismo. Alguém faz uma sugestão, um rumor, uma hipótese, o jornalista seguinte já veicula a informação como sem sombra de dúvidas verdadeira.
Resumindo, navegar nestas ondas todas é um trabalho de Hércules. Também o M.S. Fonseca, da Guerra & Paz, me pedira para colaborar no blogue dele. Tive que lhe dizer Epá, isso dá muito trabalho. Já não tenho força anímica (a mesma do Miguel Relvas) para tal. Nos bons tempos, o beijo à espanhola não me escapava. Chafurdaria no assunto até ao ridículo. Até escreveria à Direção-geral de Saúde condenando-os por não terem tomado posição contra beijos desprotegidos em órgãos genitais, depois de toda aquela sinfonia de máscaras para nos proteger de vírus.
Não digo que não volte a escrever. Por enquanto, vou pelo caminho mais fácil de compilação de informação. Pegar nessa informação e dar-lhe um corpo teórico, já é outra faina. Veremos.
Percebo perfeitamente e obrigado pela atenção. Mas se lhe apetecer escrever seja o que for um dia, diga (para a coluna da opinião, por exemplo). O meu email de serviço 24 sobre 24 é o hassepaixao@yahoo.com
EliminarCumprimentos.
Ok, fica combinado.
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