Oliveira Salazar - Relevância do fator político e a solução portuguesa

Killer Elite (2011) – Yvonne Strahovski
Meus Senhores:

A reunião plenária ou conferência da União Nacional dá-me o ensejo de me ocupar de alguns aspetos da situação política. Estas palavras, porém, não as dirijo talvez tanto à grande massa dos meus concidadãos como aos homens capazes de refletirem com calma sobre as dificuldades presentes e cônscios do que, para além dos interesses materiais ou de preferências ideológicas, devemos à Nação.

Estes são tempos de grande preocupação e ansiedade, a que evidentemente não podemos ser estranhos. Tem-se insistido tanto em que sairá do último conflito outra humanidade e outra civilização que por toda a parte se aguarda a floração das novas realidades e muitos, se sentem inclinados a descobrir no verbalismo que enche a época a definição dos dogmas salvadores. Temos, em compensação, assistido a horrores que nem se filiam em princípios do passado nem definem ideais do futuro e são simplesmente a vergonha de uma época, cujo senso moral, embotado pelo espetáculo persistente da brutalidade, está perigosamente distanciado dos avanços do saber. E tudo isto desvaira a inteligência humana.

Não há, porém, dúvida de que no largo plano da vida da Humanidade se pode estar gerando uma sociedade diferente. 0 que se destruiu deve ser substituído, mas em grande parte já não pode ser refeito. Que parte do passado, por ser a própria verdade e a própria vida, há de perdurar? Que inovações hão- de rejuvenescer as instituições sociais? 0 pensamento dos homens, como chegado a uma encruzilhada, parece que não sabe por onde seguir.

É certo que a Humanidade acaba sempre por encontrar o seu caminho. Não está aí o problema. 0 problema está em que o encontre limpo de ruínas e isento dos sofrimentos sem conta e sem par que são o preço-por demais elevado de algumas viragens da história. Deve ao menos ser essa a preocupação dos responsáveis por estas parcelas do Mundo que se chamam nações.

Com este pensamento nos desprenderemos hoje das nebulosas em que a fantasia se compraz, mas a inteligência se perde, para examinarmos terra a terra alguns problemas mais concretos da vida política nacional.

I.

Parto de uma verificação: a relevância do fator político na vida portuguesa. Podemos lamentar que assim seja - e eu lamento-o sinceramente —, mas é assim. Isto quer dizer que nenhum problema dos que formam a trama da vida nacional pode esperar solução conveniente sem que a tenha o problema político.

Duas razões se encontram na origem do facto. Uma, de carácter geral, é a elefantíase deste monstruoso Estado moderno, que, mesmo quando desiste de se apoderar das almas, não pode abster-se de, por mil intervenções e competências, impor diretrizes e limites à livre expansão da vida social. Sobretudo aqueles que por qualquer motivo se deixaram atrasar têm de submeter-se ao impulso que só de uma ação centralizada, de uma força superior, de uma concentração de meios de toda a ordem pode derivar para o corpo social.

Outra razão, porém, é peculiar nossa e está na fragilidade da vida portuguesa em todos os aspetos sob que se possa encarar. A constituição familiar, a organização religiosa, a economia privada, a associação espontânea ou voluntária para fins culturais, morais, desportivos, de puro interesse material ou ideal, tudo parece oscilar e de facto depende do bafo salutar ou maléfico do Poder. Pode ser que uma ou outra vez essa mesma fragilidade se deva a intervenções abusivas do Estado, na ânsia de alargar a sua ação em esferas privadas da vida; no geral, e no nosso pais, o fenómeno é devido a causas profundas, que não está ao alcance de ninguém remediar em curto prazo.

E a conclusão a que chego é a seguinte: não podemos tratar levianamente; mais, não podemos dispensar-nos de dar a máxima atenção e cuidado a um problema de que depende em tão alto grau não só o destino da Nação Portuguesa como a vida e a prosperidade dos nossos concidadãos.

II.

Este problema político, que por muitas dezenas de anos envenenou a vida portuguesa, terá recebido de nós solução satisfatória? E que deve entender-se por solução satisfatória do problema político?

Não podemos fiar a resposta de tão excessiva exigência como seria a unanimidade dos cidadãos - nenhum regime a teve nunca — nem de se haver reproduzido um tipo ideal de constituição, pois que o não há. Os inimigos da atual situação política insistem em asseverar que o problema político português exige uma solução e não estará resolvido enquanto não se adotarem as providências que exatamente caracterizam outro regime diverso do atual. É evidente que os monárquicos por um lado e os comunistas por outro poderiam afirmar a mesma coisa. E isto quer dizer que para determinados grupos de cidadãos o problema político do seu país não estará nunca resolvido enquanto não receber a solução que eles próprios pretendem dar-lhe. 0 simples bom senso - mantenho-me nos limites da relatividade — repele conclusões desta ordem, e nem vale a pena que nos detenhamos nelas.

Na realidade simples das coisas, a solução é satisfatória se assegura a existência de um governo forte sob estável chefatura do Estado, aceites pela conformidade da massa dos cidadãos quando sentem defendidas as suas liberdades e interesses essenciais. Tal sorte de governo representa a própria essência e fins do poder público; a garantia das liberdades essenciais permite «a tranquilidade na ordem», que significa a paz pública. Podemos aferir, portanto, do valor de uma solução política, mais do que por justificações doutrinárias, por este facto simples mas fundamental: se houve progresso na paz. Não é discutível se gozámos de um e da outra em Portugal nos últimos vinte anos.

III.

A solução política ou o conjunto de soluções constitucionalmente encontradas para o problema português terá fatalmente de ser substituído ou sofrer profunda repercussão das transformações políticas verificadas noutros países? Há muito quem o julgue entre nós - por espírito de imitação uns, por deficiente análise dos acontecimentos outros, e alguns porventura pelo gosto da novidade ou pelo cansaço que até o bem causa ao coração humano.

Julgo que entre as reais qualidades do nosso espírito não se conta uma forte independência mental. Somos capazes de glosar, desenvolver, aplicar ou retificar ideias alheias; raro teremos lançado no Mundo uma conceção nova ou nos teremos emancipado completamente do jugo das conceções alheias. É assim no domínio da inteligência; não assim no campo da ação propriamente dita, como o demonstram duas grandes ordens de factos - os descobrimentos e a colonização portuguesa. Desta verificação se deviam tirar conclusões preciosas para a educação nacional, mas não é agora o momento para isso.

A última guerra foi sem dúvida conduzida à sombra de uma bandeira, mas tenho tido dificuldade em crer que o fosse em todos os campos ao abrigo de uma ideologia, ao menos de uma ideologia claramente definida e unanimemente adotada. Os factos têm-se encarregado de o confirmar com urna clareza meridiana. A irredutibilidade de conceitos fundamentais acerca do homem, da sociedade civil, do Estado, mesmo de processos de governo, não era menor entre os aliados na guerra que entre estes e os seus inimigos. Nem é exato que fossem substancialmente diversos os processos de conduzir a guerra; a vitória deveu-se sobretudo à supremacia dos exércitos, conduzida por autoridades fortes na frente e na retaguarda, nos campos de batalha e nas oficinas, na luta e no governo. E também não é exato que da guerra tenha saído uma floração de instituições eficientes; é quase cruel anotá-lo, perante o que se passa no Mundo. Sempre entendi que deveria ter-se feito distinção entre o reconhecimento das liberdades fundamentais que consubstanciam o respeito, por parte do Estado, da pessoa humana e as mil formas de organização do poder, salvo quando esta é condição essencial da efetividade daquelas. As discussões têm revelado o equívoco, mas não esclarecido o problema; já nem mesmo se sabe o que há de entender-se por democracia.

É justo termos a maior compreensão em face das dificuldades que sentem hoje muitos países para ressurgir das ruínas e encontrar uma base estável de organização política e de paz social. Mas não podemos tomar como a última palavra da sabedoria política o que nalguns casos são apenas compromissos entre forças opostas, tentativas de acerto, quando não erupções da profunda desordem em que a Europa ficou. Devemos subir a outro plano para compreendermos melhor os problemas presentes e o valor das soluções.

IV.

Devemos ter como factos primaciais do nosso tempo os seguintes: a deslocação do poder político internacional por efeito da última guerra; a tendência para se deslocar o centro de gravidade das forças internas, fenómeno provocado em todo o Mundo pela ascensão das massas ao bem-estar, à segurança e à atividade política. Examinaremos separadamente estes dois grandes acontecimentos.

Da última conflagração, esmagados o Japão e a Alemanha, surgiram para a hegemonia mundial dois grandes poderes: os Estados Unidos e a Rússia. A Inglaterra, que pôde heroicamente salvar-se e à comunidade das nações britânicas, vê alterada a sua posição relativa, de modo que, embora fazendo jogo independente na defesa dos seus interesses próprios, se tem aproximado mais e mais da conceção dualista do mundo anglo-saxónico, a cujo entendimento e ação concorde as duas potências que o representam vêm sacrificando a inteira liberdade de se determinar.

Os Estados Unidos sentem, como não sentiram em 1919, a responsabilidade da sua força e da sua vitória, e dá-se com eles o estranho caso de ascenderem ao primeiro plano da política mundial pelo seu próprio valor, sem dúvida, mas também impelidos, solicitados pela generalidade das nações. É quase uma hegemonia plebiscitada, tal a consciência da insegurança e da possibilidade de mergulhar numa catástrofe sem a ajuda da grande nação americana. De onde nasce este sentimento tão geral, tão vivo e tão profundo que não deixou mesmo gozar o segundo minuto da vitória?

Penso que devemos considerar os Estados Unidos e a Inglaterra como povos pacíficos, a avaliar pela ansiedade de regressarem à vida de trabalho depois dos conflitos internacionais e pela sua impreparação habitual para aqueles em que são obrigados pela força das coisas a participar. Ignoro se da Rússia se pode dizer a mesma coisa; ainda na melhor hipótese, há outras diferenças que convém anotar.

Sem se esquecerem os valiosos auxílios e apoios que recebeu dos seus aliados, a Rússia revelou extraordinárias qualidades de resistência, de valor ofensivo e de organização, quer económica quer militar. Sofreu e bateu-se valorosamente e pôde endossar tanto às suas armas como às virtualidades do seu regime político parte importante do prestígio da vitória.

Não pode duvidar-se de que o seu poder é forte, dotado de uma capacidade de deliberação e de execução com que outros não podem competir e liberto do peso de uma opinião pública, inexistente ou adrede preparada para apoio da política a seguir. A Rússia é, além disso, a fonte viva duma ideologia ou mística que se pretende universal, portadora de uma mensagem de libertação de todos os povos e, sobretudo, das massas supostamente escravizadas e contra a qual o liberalismo não tem podido lutar com êxito, obrigado como está a reconhecer ao comunismo direitos de cidade, em igualdade de condições com outros programas de reforma política ou social. Por virtude da expansão da sua ideologia, a Rússia não tem só adeptos por toda a parte; ela encontra-se indiretamente na raiz da inspiração e da atividade governativa em muitos países.

A estratégia da última fase da guerra, por exigência das operações ou da política, não só pôs na mão da Rússia a direção efetiva dos negócios de algumas nações como lhe entregou as posições-chave de onde pode partir-se em todas as direções à conquista do continente. E, quando se compara a vastidão do seu território e recursos de população e riqueza com o fio de pequenos países seus vizinhos na Europa, não se pode deixar de sorrir ante a insistência com que tem feito aceitar as imposições do seu «direito de defesa».

Eu quero concluir o seguinte: a Rússia tem hoje todas as possibilidades de dominar inteiramente a Europa e pode fazê-lo sem que a maior parte dela possa sequer lutar. É isto pelo menos o que está na lógica do seu poderio incontrolável e da sua doutrina.

Falo em perigo potencial, e não efetivo, visto os dirigentes soviéticos não estarem obrigados a qualquer lógica senão muito realisticamente à dos seus interesses e a posição puramente defensiva de todas as outras nações lhes permitir escolher oportunidades e meios de ação.

A vida tem surpresas de fazer pensar: quase toda a Europa se bateu e se arruinou por se opor à «nova ordem» de conceção germânica; mas é sobre as suas ruínas ainda fumegantes que se vê alastrar a «nova ordem comunista». Ora esta é, por definição, exclusiva e inconciliável com o conceito de civilização de que se orgulham as outras hegemonias. A Europa tem de escolher.

Isto o que se enxerga a olho nu, e decerto muitos outros pensam como eu. Sinto que sobre a miséria e devastações do último conflito é um crime toda a palavra imprudente e incitadora de um estado de espírito belicoso ou menos conforme à universal necessidade e ânsia de paz, e as minhas palavras não podem ser acusadas disso. Mas é crime mais grave ainda contra a Humanidade fechar os olhos a realidades palpáveis e portadoras de germes tão graves para a mesma paz que se pretende consolidar.

Ora quando atento na profundidade da crise que a Europa atravessa e vejo que o remédio mais imediato é para alguns de nós a existência de três, seis ou dez partidos, um Parlamento tumultuoso e um governo paralisado pela pressão de elementos contraditórios, não posso deixar de considerar a desproporção entre o mal e os remédios e verificar com profunda tristeza a cegueira dos homens.

A Rússia dispõe de uma doutrina, de uma força, de uma técnica e de um governo. Admitamos que os seus intentos e o seu interesse são viver pacificamente a sua vida, e não impor fora das fronteiras a «sua ordem». Como poderão emergir das ruínas e da anarquia atual estados sem doutrina, sem força, sem técnica de ação e sem governo? Cada um pode tirar daqui as conclusões que entender.

Digamos agora alguma coisa do outro grande acontecimento a que aludi acima. 0 mundo que aí vem, a sociedade em que vamos viver, serão certamente muito diversos do mundo e da sociedade atuais - quadro das nossas emoções, da nossa compreensão e dos nossos interesses. E ainda que as grandes transformações sociais costumam operar-se não por saltos bruscos mas paulatinamente, todos podem verificar como se modificam a cada momento coisas que reputaríamos imutáveis. A nossa inteligência da vida, das relações com os semelhantes, da função da riqueza e do trabalho, da hierarquia tradicional de valores na sociedade vai-se alterando e um dia quase não perceberemos como nós ou nossos pais podiam pensar diferentemente no tempo antigo.

Não é exato que o chamado movimento ascensional das massas seja fenómeno originado nas duas últimas guerras, embora estas hajam contribuído para abalar a solidez dos quadros existentes e de posições que sem isso talvez se mantivessem ainda por muito tempo. Nem se deve pensar que para o facto tenha de algum modo contribuído a revolução bolchevista, por muitos considerada mais como salto ousado para alcançar o Ocidente do que pioneiro, guia ou padrão de justiça social. 0 que o bolchevismo fez foi outra coisa: acreditou a mística da possibilidade de se criar uma sociedade inteiramente nova, modelada em ficções ideológicas e com desconhecimento ou desprezo do que o homem é no seu ser moral; o que fez foi, pela extensão da experiência e pela ousadia da propaganda, transviar muitos dos que deviam estar seguros da verdade e impor dois sentimentos de baixa classe, perniciosos ao progresso humano: a desmoralização e subserviência das elites e a supremacia do número.

Seja como for, todo o Estado moderno, independentemente da sua fácies política, vai ser dominado pela preocupação do «social», preocupação que há de certamente traduzir-se em intervenções mais ou menos profundas no domínio económico — propriedade e produção —, mas cuja finalidade se cifra em se conseguir melhor distribuição da riqueza produzida e na admissão da generalidade dos indivíduos aos benefícios da civilização.

Quer pelo facto de os interessados tenderem a confiar da sua própria ação a satisfação das suas reivindicações, quer em virtude das melhorias conquistadas, não se pode desconhecer o peso que essas massas representam na vida do Estado e até na sua organização. A questão que se põe é por isso a seguinte: qual a melhor forma de representação e de defesa dos trabalhadores no Estado?

A segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do atual parece terem revelado que o regime parlamentar não pôde dar solução satisfatória ao problema. Tanto quando as massas trabalhadoras se desinteressaram da organização do Estado como quando se interessaram na sua direção por meio de partidos socialistas, sentiu-se que não foi atingido o escopo geral. Em numerosos casos ao lado do partido - organização política - surgiu o sindicato e seus graus superiores — organização social. É inútil pensar que o alargamento do sufrágio daria satisfação e resolveria a dificuldade. Na melhor hipótese a representação parlamentar oferece o aspecto duma duplicação de forças, que ou se revelam hostis ou pelo menos inarmónicas, mesmo quando o partido que se arroga a representação das massas operárias exerce com exclusividade o poder. Por mim não estranho que assim seja.

Primeiro: o Estado define, representa e defende tal multiplicidade de interesses que não pode subordinar-se, sem risco para a Nação, a um pensamento de classe ou dedicar-se à exclusiva satisfação das reivindicações desta. De modo que um partido socialista, para ser partido de governo, tem de ter as suas ideias sobre o conjunto dos problemas nacionais, e perde por esse facto o paralelismo que deveria prendê-lo à massa que, teoricamente ao menos, está na sua base. Daqui resulta como consequência fatal que a representação do interesse do operário ou, mesmo em termos mais latos, do trabalhador tem de ser confiada a indivíduos cujas ligações em muitos casos se devem considerar bastante longínquas do mundo real do trabalho, o que, por ser necessário, nem sempre se afigurará legítimo.

Em segundo lugar: é tal a complexidade das sociedades civilizadas, são tão numerosos e intrincados os interesses materiais e morais que nelas se movimentam tão necessárias uma direção superior e uma ação arbitral para dirimir conflitos possíveis, que bem parece não poder o Estado exercer a sua ação independentemente de duas condições: a primeira, a existência de uma organização social-base, estranha e independente de qualquer outra organização destinada a criar um órgão político de representação; a segunda, a reforma do Estado no sentido de se aproximar ou, melhor, de incorporar em si mesmo essa organização.

Sou assim levado a crer que a solução do problema enunciado acima vai impor no futuro um tipo de Estado no qual o conjunto dos interesses da Nação, integralmente organizados, tenha representação efetiva e direta por intermédio dos próprios interessados.

Não desejava que nos considerassem precursores, mas é aquilo mesmo o que pacientemente temos procurado fazer.

VI.

Vou terminar:

Levaram há dias a dormir o eterno sono na sua querida terra de província um homem que foi meu professor de Direito em Coimbra. Sem grandes qualidades de exposição e de brilho, era, no entanto, possuidor de uma grande inteligência e de primores de carácter verdadeiramente excecionais. Militou num dos antigos partidos e penso que, conservando-se alheado da atividade política, quis manter-se fiel à sua anterior posição.

Um dia, de passagem em Lisboa, e vencendo uma espécie de repugnância instintiva, subi pela primeira vez as escadas do Terreiro do Paço para o cumprimentar, pois que fora nomeado ministro da Instrução. Recebeu-me, como sempre e como a todos, com bondosa simplicidade; e às palavras que lhe dirigi e em que certamente deixara transparecer a esperança de vasta ação reformadora, tão urgente naquele sector da administração pública, cortou cerce todas as minhas esperanças com esta frase de puro desânimo: «Não! Não se pode fazer nada».

Não lhe sobressaltara o espírito sequer aquele alvoroço dos primeiros momentos, natural aliás em quem é elevado a alta posição; nem lhe animava o olhar aquele fogo interior — esperança, contentamento ou ambição satisfeita. Encostado à secretária, o olhar vago, os braços cruzados, o ar de vítima, a sua figura ficou sendo para mim um símbolo: pareceu-me que esse homem de bem apenas por disciplina aceitara esta coisa horrível que é o sacrifício do valor próprio à inutilidade total.

Diante do seu espírito, ao medir as possibilidades de ação, perpassava certamente a imagem da balbúrdia, sanguinolenta ou torpe, em que nós acabámos por converter, na sua transplantação para Portugal, o correto e fleumático parlamentarismo britânico.

Por andar muito longe do meu espírito qualquer ideia de governar, não o pensei então; mas depois disso muita vez me surpreendi a interrogar-me: porque havia o discípulo de fazer mais ou melhor do que o mestre? Esta pergunta torna a conduzir-nos ao coração do problema objeto do meu discurso.

Não é exato que todos os regimes se equivalham e também não é seguro que o mais perfeito no domínio da doutrina seja sempre o melhor nas contingências da prática. De uns se diz terem virtualidades peculiares e de outros se sabe exigirem aos cidadãos virtudes cívicas em grau que nem todos os povos atingiram ainda. Pode, porém, afoitamente assegurar-se que a eficiência não é igual em todos nem igual o rendimento do elemento humano.

Quando um país encontrou, como Portugal, uma linha conveniente de pensamento e de ação política, assente em segura experiência, é desassisado trocá-los, dando atenção a vozes, aliás dissonantes, que se erguem das ruínas e das divisões da Europa a apregoar sistemas salvadores. Sejamos largos de pensamento e aceitemos as correções e desenvolvimentos que o regime comporta, sem se negar; intensifiquemos a aplicação dos princípios que só parcialmente têm sido aplicados quanto à organização e representação direta no Estado dos interesses que se movem no seio da Nação; continuemos de braços abertos para a colaboração de todos os que de coração isento desejem apenas trabalhar para o bem comum. Sobretudo, não percamos o ânimo nem a serenidade neste tormentoso mar de paixões e sejamos prudentes. Tempos houve em que os portugueses se dividiam acerca da forma de melhor servir a Pátria; talvez se aproximem tempos em que a grande divisão, o inultrapassável abismo há de ser entre os que servem a Pátria e os que a negam.

Oliveira Salazar - Discursos e Notas Políticas (1943 a 1950)

Na sessão inaugural da I Conferência da União Nacional, em 9 de novembro de 1946, realizada no Liceu D. Filipa de Lencastre.

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