Sociedades fantasma e petróleo angolano. Inspetor explica como Salgado tentou dar "uma roupagem" ao dinheiro que terá chegado a Sócrates

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Com Sócrates já sem advogado escolhido por si, a sessão da tarde desta terça-feira debruçou-se novamente sobre o caminho do dinheiro entre o Grupo Espírito Santo e os milhões nas contas de Carlos Santos Silva que viriam a ser disponibilizados ao antigo primeiro-ministro - e que a acusação diz terem sido fruto de luvas por benefícios dados a, entre outros, Ricardo Salgado, enquanto era chefe do governo.

Manuel Silva, um dos inspetores tributários responsáveis por desvendar o circuito obscuro de empresas e offshores do BES, voltou ao tribunal para explicar em detalhe como a operação montada por Salgado quis dar “uma roupagem” através de sociedades que, na prática, não existiam.

Um dos casos mais evidentes, contou em tribunal, aconteceu em 2007, quando o Grupo Espírito Santo assinou um suposto contrato entre uma sociedade chamada Markwell, propriedade de Hélder Bataglia - ex-líder do BES Angola e tido como um dos intermediários de José Sócrates -, e uma outra chamada Pinsong, criada a mando de Ricardo Salgado. O contrato tinha como objetivo a prestação de consultoria para a exploração de um bloco de petróleo em águas angolanas.

Mas, como destacou Manuel Silva, algo não batia certo: ambas as sociedades eram fantasma. “É uma sociedade que não existe, que não tem nada, a transferir verbas para outra, que não tem nada também” e, explica, aquilo que entenderam foi a existência de um plano para “dar uma realidade operacional” impossível.

Até porque, como depois os investigadores viriam a aperceber-se, o success fee de sete milhões que a Pinsong viria a pagar à sociedade de Hélder Bataglia para conseguir alcançar o suposto contrato foi pago antes mesmo de o governo angolano oficializar a abertura do concurso de exploração petrolífera. Esse valor estava “relacionado com um concurso que não tinha sequer começado”.

Esses milhões e muitos outros chegariam depois às contas sediadas na Suíça de Carlos Santos Silva que estavam abrangidas pelo Regime Excecional de Regularização Tributária (RERT) e que acabariam por ser o pontapé de saída para a investigação da Autoridade Tributária. “As autoridades suíças tinham já um conhecimento sobre a origem e o circuito do dinheiro”, conta o inspetor, explicando que receberam dos suíços um instrumento que acabou por definir toda a investigação.

Quando entrou para esta investigação, em 2005, Manuel Silva teve acesso a um “documento importante”. “Era uma árvore bastante complexa, uma espécie de diagrama que fazia uma reconstituição das verbas comunicadas no RERT pelo engenheiro Carlos Santos Silva” - o testa de ferro de Sócrates, segundo a acusação. Depois disso, os inspetores em Portugal começaram um rastreamento desse diagrama “muito extenso e complexo que foi sido reconstituído numa lógica de puzzle”.

Foram analisados cerca de 170 milhões só na esfera da Espírito Santo Enterprises - o “saco azul” do GES - e o processo era mantido numa lógica de máxima reserva. “A nossa informação era muito segmentada em discos externos encriptados só com a info que precisavam.” No final, conta, “todas as verbas” de Santos Silva na Suíça foram rastreadas e a conclusão foi a seguinte: todos os valores que entraram nas contas do amigo de José Sócrates têm origem em negócios que foram alvo da acusação: como ‘luvas’ pagas pelo GES ou pela Vale do Lobo. “Todas as verbas, até ao cêntimo, foram mapeadas. Era uma prioridade da investigação.”

Já a defesa de Ricardo Salgado acabou por contestar este testemunho, salientando que o antigo banqueiro está “impossibilitado de defesa” já que, pelo menos desde julho deste ano, está submetido a um regime de maior acompanhado e, por isso, “o seu direito ao contraditório está inviabilizado”.

Para esta quarta-feira está prevista a audição de Henrique Rodrigues, um dos homens mais próximos de Hélder Bataglia, mas também de António Joaquim Fernandes, engenheiro ligado à construção de casas na Venezuela - um dos alicerces deste processo.

Fonte: CNN Portugal, 4 de novembro de 2025

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