O estranho caso da Linha do Norte
Perry Mason
(1957-1966) – Dolores Michaels
As
grandes obras públicas são a verdadeira gangrena do Regime. Apresentadas como
urgentes, contornam regras de contratação pública, derrapam preços e favorecem
oligopólios
Em Portugal, há mistérios ferroviários que fariam corar o
Sherlock Holmes. E não me refiro aos fenómenos do Entroncamento. Um dos mais
intrigantes chama-se Linha do Norte — essa via mítica que, dizem os alguns
iluminados, precisa de ser renovada já-já porque está mais congestionada do que
as urgências à segunda-feira. Segundo os especialistas do regime, trata-se de uma
espécie de IC19 às 8 da manhã ou de uma VCI em véspera de feriado, mas com
locomotivas a vapor. Só que não. Balela. É tudo só e apenas para alimentar as
grandes empresas do regime. Chama-se corrupção. Aqui sim, está a grande
corrupção.
Não é preciso ser a Agatha Christie ou um cão pisteiro para descobrir que, durante largos períodos do dia, não passa ali um único comboio. Nada. Ninguém. Aliás, a linha “mais congestionada do país” às vezes parece a Estrada Nacional 2 a meio de janeiro.
O problema é que esta “urgência ferroviária” justifica uma
obra de 20 mil milhões que, como se não bastasse, está cheia de outros
absurdos.
O consórcio que ganhou o concurso para a nova linha de alta
velocidade ferroviária Lisboa-Porto-Vigo, (liderado pela omnipresente
Mota-Engil) vai mudar o traçado, a estação de alta velocidade e construir duas
pontes sobre o Douro em vez de uma rodoferroviária. Soluções diferentes do
previsto no caderno de encargos. Ou seja, depois da obra de que ninguém
precisava lhe ser adjudicada, alterou-a completamente, sem que o governo ou a
Infraestruturas de Portugal (IP) tivessem conhecimento.
O Plano Ferroviário Nacional, publicado em Diário da
República (DR), por exemplo, estabelece que a estação de alta velocidade de
Gaia é em Santo Ovídio.
O caderno de encargos do concurso público menciona por 17
vezes a estação de Santo Ovídio, mas o consórcio diz que vai ser em Vale
Paraíso. Enfim, é tudo à vontadinha para os amiguinhos.
Como se não bastasse, vai de Bitola ibérica — para não nos
ligarmos à Europa. E ainda se constrói só para passageiros, porque as
mercadorias devem continuar a cumprir o ritual anual de penitência na velha
via. Teremos então duas linhas: a antiga, que funciona; e a nova, que serve
para apascentar bancos, promotores e um ou outro amigo do statu quo. Para eles,
a coisa está garantida com taxas de rendibilidade interna dos projetos
superiores a 14%, dos quais metade vai para os bancos, que cobram juros superiores
a 7%.
Se a Linha do Norte serve, se pode ser melhorada, se permite
fazer Lisboa-Porto em 2h15 — como nos prometeram há 30 anos — porque razão nos
estão a vender uma alta velocidade que não resolve o essencial e compromete
gerações? Porque é que nunca há dinheiro para a saúde, escolas ou salários
dignos, mas há sempre para túneis, viadutos e pontezinhas de milhões?
A resposta é simples: porque as grandes obras públicas são a
verdadeira gangrena do Regime. Apresentadas como urgentes, contornam regras de
contratação pública claras e mecanismos de pré-avaliação por entidades
independentes, derrapam preços e matam o mercado concorrencial, favorecendo
oligopólios.
O estranho Caso da Linha do Norte não é um mistério. É um velho enredo luso: inventa-se um problema, finge-se
urgência, baralha-se a opinião pública com jargão técnico e alguém enriquece
enquanto o país empobrece. O comboio talvez não chegue a horas, mas
a fatura chega sempre. Isso é certinho.
Joana Amaral Dias
Fonte: SAPO, 10 de dezembro de 2025

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