Banco de fezes: investigador procura financiadores para montar laboratório que pode salvar vidas

 



Black Killer (1971) - Tiziana Dini, Antonio Cantafora

A qualidade das nádegas não interferirá na pesquisa, apenas tornará a coleta mais agradável.

Cientista da UFSC explica como o armazenamento de amostras pode ser usado para tratar doenças e controlar infeções

Fezes – sim, fezes – podem ser usadas para o tratamento de doenças, para controlo de infeções e até para melhora em quadros do espectro autista.  O transplante da microbiota intestinal (TMI), mais conhecido como transplante de microbiota fecal (TMF), vem sendo aplicado como método eficaz em todo o mundo para tratar problemas causados por bactérias multirresistentes a antibióticos e muitas outras condições. Esse é o principal tema de pesquisa de Carlos Zárate-Bladés, professor e médico que criou o Centro de Controlo da Disbiose e lidera uma equipa de investigadores no Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Boliviano que mora em Florianópolis desde 2015, Zárate-Bladés comenta que a transferência de microrganismos de uma pessoa pode restabelecer o equilíbrio da microbiota intestinal. “O transplante de microbiota se consolidou para tratar uma infeção de repetição causada pela bactéria Clostridioides difficile, que provoca diarreia no paciente podendo evoluir para a inflamação do cólon. Esse patógeno é responsável por alta taxa de mortalidade em pacientes internados em hospitais; com o transplante, o sucesso da recuperação é superior a 90% para essa infeção em específico”, salienta o investigador.

A alteração da microbiota é chamada de disbiose, que pode ser intestinal, mas também vaginal, de pele, de pulmão e de qualquer outra mucosa do corpo. O desequilíbrio costuma provocar o aparecimento de doenças de diversos tipos, sendo a mais comum associada ao uso de antibióticos, mas também pode ser um problema consequente por uma outra doença de base. 

Outras alterações são atribuídas a pessoas com doenças inflamatórias intestinais como a colite ulcerativa e a doença de Crohn são condições que podem beneficiar com esse tratamento. Assim, o objetivo do investigador Carlos Zárate-Bladés é desenvolver a técnica do Transplante da Microbiota Intestinal (TMI) no Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago, da Universidade Federal de Santa Catarina (HU-UFSC). Isso envolve investimentos para uma estrutura adequada, realização e manutenção da pesquisa.

Devido à baixa incidência de efeitos colaterais, o transplante de fezes é recomendado pela Sociedade Americana de Doenças Infeciosas (IDAS) e pela Sociedade Europeia de Microbiologia Clínica e Doenças Infecciosas (ESCMID). O primeiro transplante de fezes no Brasil foi realizado no Hospital Israelita Albert Einstein, em 2013. Existe um banco de fezes no Hospital da Universidade Federal de Minas Gerais, que vem realizando de forma rotineira o transplante desde 2017.

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Entenda como funciona o transplante de fezes

Em primeiro lugar, para realizar a caracterização dos doadores de fezes, coleta do material e armazenamento, é preciso ter um biorrepositório de fezes. Idealmente, seria necessário começar esse processo com 10 a 20 doadores, que irão doar as fezes por um período curto de tempo em repetidas oportunidades. A parte mais onerosa desse projeto é justamente pesquisar doenças em todos estes indivíduos, cerca de 10 mil reais por paciente/voluntário. “Para isso, precisamos contar com aproximadamente 200 mil reais para fazer a caracterização de forma tranquila e qualificada”, explica Zárate-Bladés. No entanto, até o momento, os investimentos na pesquisa foram de 25 mil reais.

Isto feito, o passo seguinte requer o armazenamento das fezes, que são depositadas em potinhos semelhantes aos usados para coleta em laboratório. A partir disso, esse material é depositado num biorrepositório, guardado em condições ideais para preservação e, posteriormente, dever-se-ia manter esse biorrepositório ao longo do tempo, já na forma de um biobanco.

O transplante de microbiota fecal consiste numa desinfeção do intestino de uma pessoa com antibióticos e, somente depois, é administrado o conteúdo microbiológico contido nas fezes de um doador saudável. O procedimento mais comum atualmente, segundo Zárate-Bladés, é por colonoscopia, sendo a administração do material por via retal, precisamente no intestino grosso; método comum utilizado para avaliações e tratamentos das porções finais do intestino.

Em seguida, as bactérias “boas” transplantadas começam a ocupar o intestino e reconstituir a microecologia desse órgão que se encontra alterada pela doença. “Em aproximadamente 90% dos casos da infeção por C. difficile, as funções intestinais voltam ao normal, mas já sabemos de respostas 100% positivas”, revela o investigador. É importante realçar que, neste processo, o que se quer dos doadores de fezes são as bactérias saudáveis que compõem a sua microbiota intestinal, por esse motivo a seleção de doadores é muito rigorosa.

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A investigação de Zárate-Bladés e os interesses no setor produtivo

Carlos Zárate-Bladés recomenda o transplante de microbiota intestinal (TMI) como um tratamento altamente eficaz para tratamento de Clostridioides difficile, infeção bacteriana debilitante que atinge meio milhão de americanos por ano e mata 30 mil. Os dados são do Centers for Disease Control and Prevention.

Do ponto de vista epidemiológico, os casos no Brasil ainda são subnotificados e os estudos escassos, isso dificulta informar os dados no cenário nacional. Conforme Zárate-Bladés, C. difficile é na atualidade um importante bacilo causador de diarreia desencadeando outros cuidados de saúde, principalmente nos hospitais.

O Serviço de Controlo de Infeção Hospitalar do HU-UFSC tem especial interesse na implementação do método de transferência de bactérias saudáveis para tratar infeções, em vista de que serão realizadas a aplicação e a validação de um procedimento mais específico para a deteção de Clostridioides difficile e, sobretudo, no uso do procedimento contra bactérias multirresistentes a antibióticos, até mais comuns que C. difficile.

Entre os benefícios do transplante de microbiota intestinal, Zárate-Bladés destaca a rapidez e a melhora significativa no diagnóstico para o paciente, garante o tratamento adequado e, ainda, reduz custos gerais, como tempo de internamento envolvendo a infeção causada por esta bactéria. Além disso, “a descolonização de pacientes com bactérias multirresistentes, usando o TMI, pode gerar uma economia enorme para o hospital, evitando infeções e recidivas frequentes”, argumenta. Inclusive o cientista da UFSC vê potencial para o uso do TMI para ajudar a tratar outras doenças, como cancro, diabetes e, ainda, crianças portadoras do Transtorno do Espectro Autista (TEA).

Interesse científico na microbiota intestinal de crianças autistas

O Transtorno do Espectro Autista (TEA), é uma condição neurológica e de desenvolvimento que afeta a forma como os humanos comunicam, aprendem coisas novas e se comportam.

Entre os principais sintomas do TEA estão as dificuldades em interagir com os outros e se adaptar a mudanças na rotina, comportamentos repetitivos, irritabilidade e interesses restritos ou fixados por coisas específicas.

Zárate-Bladés tem interesse científico sobre as consequências da microbiota intestinal disbiótica, ou seja, de funcionamento alterado e/ou em desequilíbrio, no comportamento e neuro-desenvolvimento de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA).

Em estudos recentes foi possível identificar 57,5% de Candida spp. (um tipo de fungo), em amostras de crianças com TEA. Para o investigador, esse dado é promissor para a compreensão do papel da disbiose fúngica, especificamente em crianças autistas, além da relevância para a clínica e possíveis formas de controlo.

A composição biológica do intestino está ligada diretamente ao nosso sistema nervoso central formando um eixo microbioma-intestino-cérebro”, explica o investigador, isso explica o facto de as bactérias intestinais exercerem influência sobre os comportamentos sociais.

Fonte: Universidade Federal de Santa Catarina, 17 de outubro de 2022

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