Conspiração, crime e fake news: as controvérsias do Telegram
Alfred
Hitchcock Presents / The Last Remains
Aplicação popular tanto entre criminosos quanto entre
oposicionistas de regimes autoritários, promete anonimato – mas tem graves
problemas de segurança. A prisão do cofundador Pavel Durov gera preocupação na
Rússia.
Irão, 2017-2018: protestos na cidade de Mashhad denunciam
corrupção, má administração e um aumento nos preços dos alimentos. Em poucos
dias, as manifestações espalham-se para dezenas de outras cidades e comunidades
rurais do país. O governo em Teerão tem dificuldades para manter o controle da
situação.
Tailândia, 2020: depois de iniciada por um partido de
oposição, a resistência ao regime militar do primeiro-ministro Prayut
Chan-o-cha cresce nas universidades do país. Os protestos rapidamente se
multiplicam, levando as autoridades a declarar estado de emergência.
Bielorrússia, 2020: uma nação governada há décadas por um
autocrata realiza eleições presidenciais. Após a votação, o ditador Alexander
Lukashenko anuncia ter sido reeleito. Seguem-se meses de protestos em massa.
Todas essas mobilizações, assim como várias outras, têm um
fator em comum: foram amplamente organizadas através do Telegram.
Anonimato e grupos de tamanho
ilimitado
O serviço de mensagens tornou-se um dos mais populares do
mundo desde que foi cofundado, em 2013, por Pavel Durov – que virou alvo da justiça
na França.
Mais de 900 milhões de pessoas utilizam o Telegram, que se
orgulha de regular conteúdo com rigidez bem menor do que as demais aplicações
de mensagem. A plataforma também é capaz de funcionar com conexão de internet
em velocidade extremamente baixa, como ocorre quando os governos tentam
bloquear a sua utilização.
Além disso, a aplicação permite a formação de grupos com até
20 000 participantes, o que possibilita a mobilização rápida de uma quantidade
enorme de pessoas.
A aplicação promete aos utilizadores um nível
particularmente alto de anonimato. Apesar da necessidade de os usuários
registrarem um número de telemóvel ao abrirem seus perfis, distintamente do
concorrente WhatsApp, eles podem adotar um nome de utilizador que pode impedir
que os demais membros de um determinado grupo possam ver o número registado.
Todas essas funções fazem com que a ferramenta seja bastante interessante para
determinados grupos – seja para o bem ou para o mal.
Fake news, propaganda e
extremismo
Os interessados não são apenas os grupos de oposição que
vivem sob regimes autoritários. O Telegram, por exemplo, também se tornou a
plataforma favorita dos negacionistas
da covid-19 em 2020.
Após o Parler – a plataforma preferida dos
extremistas de direita e radicais para disseminar conteúdo da ultradireita –
ser temporariamente fechado, o Telegram passou a ser a nova ferramenta favorita
da extrema direita, com o surgimento de inúmeras campanhas de desinformação e
fake news.
O Telegram também atrai criminosos cibernéticos, Pavel Durov
é acusado, entre outras coisas, de permitir que o crime organizado floresça na
sua plataforma, sem impedir a distribuição de material de pornografia infantil,
e de acobertar esses crimes.
A prisão de Durov gerou uma situação incómoda, na qual o
Kremlin – que tem inúmeros canais no Telegram – se queixou com a mesma
intensidade das principais lideranças de oposição na Rússia. Georgia Alburov,
colaboradora de Alexey Navalny, o líder oposicionista falecido na prisão,
chegou ao ponto de afirmar que a detenção de Durov representa um "duro
golpe contra a liberdade de expressão".
Falhas graves de segurança
Ainda assim, a plataforma não é tão segura e anónima quanto imagina a maioria dos utilizadores.
É, na verdade, exatamente o oposto disso.
"Pode perguntar a quem quiser nos círculos de segurança
e todos vão dizer que o Telegram está muito atrás de outras plataformas no que
diz respeito à confidencialidade de conteúdo", afirma Jürgen Schmidt, que
dirige o portal Heise online, com notícias da área da tecnologia da
informação.
Ao contrário de aplicações como o WhatsApp ou o Signal, o
conteúdo no Telegram não tem criptografia ponto-a-ponto, ou seja, entre os
telefones de quem emite e de quem recebe a mensagem. No caso do Telegram, a
criptografia ocorre entre o emissor da mensagem e o servidor e entre o servidor
e o recetor.
"O Telegram às vezes é pouco claro ao comunicar
isso", disse Schmidt à DW. "Eles falam sobre encriptar todas
as mensagens, mas isso vale somente para o caminho entre o aparelho do usuário
e o servidor. Uma vez no servidor, elas são decriptadas no formato de
texto."
"Um pesadelo em
privacidade"
Apesar de ser, de facto, possível mudar as configurações
para permitir a criptografia ponto-a-ponto, isso não é algo simples, além de
não funcionar para todos os tipos de chats.
"Isso significa que, por princípio, tudo o que é
escrito no aplicação é armazenado nos servidores do Telegram, ao qual Durov e
sua equipa têm acesso", explica Schmidt, que num de seus artigos
classifica o serviço de mensagens como "um pesadelo em termos de
privacidade".
Não se sabe, contudo, onde esses servidores estão
localizados, assim como quem tem acesso às informações neles armazenadas. O
Telegram não divulga a localização dos seus servidores.
Um passo à frente da lei?
Mas porque o Telegram é tão popular entre tantos movimentos
de oposição a governos autoritários?
"Não há uma explicação técnica", diz Schmidt.
"Ao contrário da maioria dos outros serviços de
mensagens, o Telegram não tem origem nos Estados Unidos, onde muitos ainda pensam que
agentes da 'malvada NSA' [Agência de Segurança Nacional dos EUA] estariam
envolvidos."
Ele diz que a empresa é administrada por um russo "que
ganhou credibilidade ao deixar o seu país para evitar a pressão do
regime".
Mudanças sucessivas de sede
Também é peculiar o facto de que Durov parece não manter a
empresa num mesmo lugar por muito tempo. Ao sair da Rússia, ele mudou o
Telegram para Berlim, depois para Londres, e Singapura, antes de se instalar no
Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.
"É claro que é possível especular que ele se mude tanto
para evitar os agentes da lei. Até hoje, o endereço do Telegram no Dubai é
visto de maneira favorável pelos utilizadores da plataforma, o que dá mais
credibilidade a Durov, uma
vez que ele não pode ser tão facilmente perseguido pelas autoridades da
Alemanha ou dos EUA".
Mas isso também traz sérias consequências para os usuários,
diz Schmidt. "Eles não têm hipótese de obter acesso ao Telegram",
observou.
A plataforma foi criada com isso em mente. "Pode-se
perceber isso de maneira positiva se você se tornar alvo de algum procurador de
justiça, por exemplo. Mas, isso pode trazer desvantagens para alguém que se
tornou vítima de golpistas online."
"Pessoalmente, eu me manteria bem longe do Telegram ao
tratar de qualquer coisa remotamente confidencial", concluiu o
especialista em TI.
Fonte: IstoÉ, 29 de agosto de 2024
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